O nono aniversário da guerra da Ucrânia
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O nono aniversário da guerra da Ucrânia

Jeffrey Sachs dispensa apresentações, é um personagem internacional de primeira linha, e a presente decodificação das narrativas sobre a guerra da Ucrânia nos ajuda muito
Autor
Jeffrey D. Sachs
Tamanho
3 páginas
Originalmente publicado
Valor
Data
1 de março, 2023

Não estamos no primeiro aniversário da guerra, como dizem a mídia e os governos ocidentais. Este é o nono aniversário da guerra. E isso faz muita diferença.

A guerra teve início com a violenta derrubada do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, em fevereiro de 2014, um golpe que foi apoiado aberta e veladamente pelo governo dos Estados Unidos. A partir de 2008, os EUA começaram a pressionar pela ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para a Ucrânia e a Geórgia. O golpe contra Yanukovych em 2014 esteve a serviço da expansão da Otan.

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Precisamos ver essa pressão pela expansão da Otan dentro de seu contexto. Os EUA e a Alemanha prometeram explícita e reiteradamente a Mikhail Gorbatchov, quando presidente da União Soviética, que a Otan não se expandiria “uma polegada para o leste”, depois de Gorbatchov ter dissolvido a aliança militar soviética conhecida como Pacto de Varsóvia. Toda a premissa da ampliação da Otan foi uma violação dos acordos feitos com a União Soviética e, portanto, com o posterior Estado russo.

Os neoconservadores têm pressionado pela ampliação da Otan porque querem rodear a Rússia na região do Mar Negro, de forma similar aos objetivos da Grã-Bretanha e da França na Guerra da Crimeia (1853-56). O estrategista americano Zbigniew Brzezinski descreveu a Ucrânia como o “centro geográfico” da Eurásia. Se os EUA pudessem cercar a Rússia na região do Mar Negro e incorporar a Ucrânia à aliança militar dos EUA, a capacidade da Rússia de projetar seu poder no Mediterrâneo Oriental, no Oriente Médio e mundialmente desapareceria, ou isso, pelo menos, é o que diz a teoria.

Naturalmente, a Rússia viu isso não apenas como uma ameaça geral, mas como uma ameaça específica, o posicionamento de armamentos avançados bem na sua fronteira. Isso é ainda mais ameaçador porque os EUA abandonaram unilateralmente em 2002 o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM, na sigla em inglês), o que, segundo a Rússia, representou uma ameaça direta à segurança nacional russa.

Durante sua presidência (2010-2014), Yanukovych buscou a neutralidade militar, justamente para evitar uma guerra civil ou uma “guerra por procuração” na Ucrânia. Foi uma escolha muito sábia e prudente para a Ucrânia, mas atrapalhou a obsessão neoconservadora americana com a ampliação da Otan. Quando eclodiram os protestos contra Yanukovych no fim de 2013 em razão dos atrasos na assinatura de um roteiro de adesão à União Europeia, os EUA aproveitaram a oportunidade para insuflar os protestos até que se tornassem um golpe, que culminou na derrubada de Yanukovych em fevereiro de 2014.

Os EUA interferiram implacável e secretamente nos protestos, incitando-os a continuar mesmo quando paramilitares nacionalistas ucranianos de direita entraram em cena. Organizações Não Governamentais americanas gastaram grandes quantias para financiar os protestos e a eventual derrubada. Esse financiamento pelas ONGs nunca foi bem revelado.

Três pessoas intimamente envolvidas nos esforços dos EUA para derrubar Yanukovych foram Victoria Nuland, então secretária assistente de Estado e agora subsecretária de Estado; Jack Sullivan, então conselheiro de Segurança do vice-presidente Joe Biden e agora conselheiro de Segurança Nacional dos EUA do presidente Biden; e o vice-presidente Biden, agora presidente. Celebremente, Nuland foi flagrada ao telefone com o então embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, planejando o próximo governo na Ucrânia, e sem permitir uma segunda opinião da União Europeia (“Foda-se a UE”, na frase grosseira de Nuland, gravada em fita).

A conversa interceptada revela a profundidade do planejamento Biden-Nuland-Sullivan. Nuland diz: “Então, a esse respeito, Geoff, quando escrevi a nota Sullivan voltou para mim VFR [direto a mim], dizendo que você precisa de Biden e eu disse, provavelmente amanhã para um ‘atta-boy’ [sinal de incentivo] e para que os ‘dets’ [detalhes] se encaixem. Portanto, Biden está disposto.”

O diretor de cinema americano Oliver Stone nos ajuda a entender o envolvimento dos EUA no golpe em seu documentário de 2016, “Ucrânia em Chamas”. Peço a todas as pessoas que o assistam para aprender como é uma operação dos EUA para trocar um governo. Também peço a todas as pessoas para que leiam os sólidos estudos acadêmicos do professor Ivan Katchanovski, da Universidade de Ottawa, que revisou meticulosamente todas as evidências da [Revolta de] Maidan e concluiu que a maior parte da violência e dos assassinatos não se originou do destacamento de segurança de Yanukovych, como alegado, mas dos próprios líderes do golpe, que atiraram contra a multidão, matando tanto policiais quanto manifestantes.

Essas verdades permanecem obscurecidas por um manto de sigilo dos EUA e pela subserviência europeia ao poder dos EUA. Um golpe orquestrado pelos EUA ocorreu no coração da Europa, e nenhum líder europeu teve coragem de falar a verdade. Na sequência, as consequências foram brutais, mas ainda não há nenhum líder europeu que conte os fatos honestamente.

O golpe marcou o início da guerra há nove anos. Um governo extraconstitucional, de direita, anti-Rússia e ultranacionalista chegou ao poder em Kiev. Após o golpe, a Rússia rapidamente retomou a Crimeia, na esteira de um rápido referendo, e a guerra estourou no Donbass, quando os russos no Exército da Ucrânia mudaram de lado para se opor ao governo pós-golpe em Kiev.

Quase de imediato, a Otan começou a despejar bilhões de dólares em armamentos na Ucrânia. E a guerra sofreu uma escalada. Os acordos de paz de Minsk-1 e Minsk-2, nos quais a França e a Alemanha deveriam ser cofiadores, não funcionaram, primeiro porque o governo nacionalista ucraniano em Kiev se recusou a implementá-los e, segundo, porque a Alemanha e a França não pressionam por sua implementação, como admitido recentemente pela ex-primeira-ministra Angela Merkel.

No fim de 2021, o presidente Putin deixou muito claro quais eram as três “linhas vermelhas” da Rússia que não podiam ser cruzadas: (1) a ampliação da Otan para a Ucrânia era inaceitável; (2) a Rússia manteria o controle da Crimeia; e (3) a guerra no Donbass precisava ser encerrada com a implementação do Minsk-2. A Casa Branca de Biden recusou-se a negociar na questão da ampliação da Otan.

A invasão pela Rússia deu-se de forma trágica e equivocada em fevereiro de 2022, oito anos depois do golpe contra Yanukovych. Desde então, os EUA têm despejado dezenas de bilhões de dólares em apoio financeiro e em armamentos, dobrando a aposta americana de tentar expandir sua aliança militar à Ucrânia e Geórgia. As mortes e a destruição neste campo de batalha cada vez mais cruento são chocantes.

Em março de 2022, a Ucrânia disse que negociaria com base na neutralidade. A guerra realmente parecia perto do fim. Declarações positivas foram feitas por autoridades ucranianas e russas, assim como pelos mediadores turcos. Agora, sabemos pelo ex-primeiro-ministro israelense Naftali Bennett que os EUA vetaram essas negociações, preferindo, em vez dela, uma escalada na guerra para “enfraquecer a Rússia”.

Em setembro de 2022, os gasodutos Nord Stream foram explodidos. As evidências esmagadoras disponíveis hoje são de que os EUA comandaram a destruição dos oleodutos Nord Stream. O relato de Seymour Hersh é altamente crível e não foi refutado em nenhum ponto importante (embora tenha sido negado com veemência pelo governo dos EUA). O relato indica que a equipe Biden-Nuland-Sullivan liderou a destruição do Nord Stream.

Estamos percorrendo um caminho de terrível escalada e de mentiras ou silêncio em grande parte da grande mídia dos EUA e da Europa. Toda a narrativa de que este é o primeiro aniversário da guerra é uma falsidade, que esconde as razões desta guerra e a maneira de encerrá-la. Esta é uma guerra que começou em razão da imprudente pressão neoconservadora americana pela ampliação da Otan, à qual se seguiu uma participação neoconservadora americana na operação de mudança de governo ucraniano em 2014. Desde então, houve uma escalada maciça nos armamentos, mortes e destruição.

É uma guerra que precisa acabar antes que engula todos nós no Armagedom nuclear. Bato palmas para o movimento pela paz por seus valorosos esforços, em especial diante das mentiras descaradas e da propaganda do governo dos EUA e do silêncio covarde dos governos europeus, que agem com total subserviência aos neoconservadores americanos.

Precisamos falar a verdade. Ambos os lados mentiram, trapacearam e cometeram violência. Ambos os lados precisam recuar. A Otan precisa abandonar a tentativa de expansão para a Ucrânia e a Geórgia. A Rússia precisa se retirar da Ucrânia. Precisamos prestar atenção às linhas vermelhas de ambos os lados para que o mundo sobreviva.

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