Missão economia: um guia inovador para mudar o capitalismo
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Missão economia: um guia inovador para mudar o capitalismo

Mariana Mazzucato é hoje uma autora de referência no mundo, pela forma como ultrapassa as eternas discussões sobre teorias econômicas herdadas do passado. Uma leitura em nenhum momento atolada em economicismo, centrada em medidas concretas para nos tirar do atoleiro. Uma leitura que vale muito a pena, em particular para não-economistas.
Autor
Mariana Mazzucato
Tamanho
240 páginas
Editora
Ano
2022
ISBN
978-8582852408

Mission economy by Mariana Mazzucato

Mariana Mazzucato publicou nos últimos anos três livros de grande impacto internacional: “O Estado empreendedor”, “O Valor de tudo”, e agora este “Missão economia”, título que seria melhor traduzido como “Economia organizada por missões”, já que em inglês “Mission Economy”  traz esse sentido.

Mariana Mazzucato está virando referência para todos nós. Mulher, italiana, baseada em Londres, está abrindo espaços muito mais amplos do que os eternos comentários sobre Hayek, Milton Friedman e outros economistas parados no tempo e no espaço. Estamos enfrentando um sistema diferente do capitalismo industrial que conhecemos, com o domínio das plataformas financeiras, de comunicação, de controle do conhecimento e da indústria da informação pessoal. Surge uma economia de pé no chão que ganhou força, é muito mais do que “heterodoxa”, apresentando os problemas nas suas novas configurações, e as soluções correspondentes.

O capitalismo que hoje enfrentamos, e que gera tantos desastres econômicos, sociais e ambientais, tenta se justificar com sucessos do passado. Isso tem pouco legitimidade, pois as fortunas atuais têm essencialmente origem em atividades-meio, com pedágios sobre a economia imaterial como os drenos financeiros, que pouco têm a ver com os avanços produtivos do século passado, no tempo dos capitães da indústria. Exploravam trabalhadores, mas geravam emprego e produtos, e pagavam impostos, o que permitiu desenvolver infraestruturas e políticas sociais. Hoje enriquecem com juros e dividendos, e colocam os lucros em paraísos fiscais. E se apresentam como “os mercados”, mas são drenos sobre a economia real.

Não há dúvidas quanto às contribuições do capitalismo produtivo, e inclusive hoje tantas empresas fornecedoras de bens e serviços. Mas é importante lembrar que os imensos avanços planetários nos últimos dois séculos, frente a milênios de estagnação antes disso, se devem essencialmente a avanços tecnológicos, fontes de energia que permitiram mecanização, a imensa transformação gerada pela eletricidade, o aproveitamento do petróleo, os avanços da química, a mais recente revolução digital, a explosão dos conhecimentos biológicos, tudo isso são avanços do conjunto da humanidade, resultantes da confluência de esforços de pesquisadores individuais, de universidades públicas, e também de sua implementação empresarial. O principal vetor da transformação mundial que vivemos está muito mais ligado aos avanços científicos globais do que ao capitalismo, tanto assim que transformou também a União Soviética que saiu da idade média em 1917, e conseguiu derrotar o poder militar da Alemanha nos anos 1940. A China constitui outro exemplo impressionante de como a tecnologia moderna, no quadro de diferentes formas de organização política e social, pode promover o progresso.

Lembrar que o capitalismo de plataformas que hoje enfrentamos, que tenta se vestir da legitimidade de outros tempos, teve como motor principal não liberdade de mercado, mas o avanço científico e tecnológico generalizado, ajuda a entender que estamos enfrentando novos desafios, que exigem novas respostas organizacionais. O vale-tudo das corporações internacionais rompe com o essencial do que justificava o capitalismo, ou seja, de que cada um procurando maximizar os seus lucros geraria o correspondente bem-estar para a sociedade. Seja qual for o nome que damos aos novos tempos que vivemos, indústria 4.0 ou revolução digital, o fato essencial é que precisamos resgatar a sua funcionalidade: a lógica do seu funcionamento mudou.

Mariana Mazzucato publicou nos últimos anos três livros de grande impacto internacional: O Estado Empreendedor, O Valor de tudo, e agora este Missão Economia, título que seria melhor traduzido como “economia organizada por missões”, já que em inglês Mission Economy traz esse sentido. O primeiro, Estado Empreendedor, é muito utilizado no mundo e no Brasil, pois desmonta a farsa da privatização, mostra as bases públicas que permitiram inclusive os avanços privados, e propõe resgatar uma parceria inteligente em vez das simplificações ideológicas do estado mínimo. Prejudicar o interesse público para maximizar os lucros corporativos simplesmente não funciona, e muito menos a narrativa de que o Estado atrapalha o bem que o setor privado poderia trazer. Estado empreendedor, motor essencial da economia.[1]

O Valor de Tudo, de 2018, tem o subtítulo de making and taking in the global economy, que podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, subtítulo que reflete o essencial do aporte do livro, que é como diversos grupos sociais, empresas privadas, o setor público e os movimentos sociais, contribuem ou geram custos para a economia moderna, nesta era digital e financeirizada. O livro é essencial na medida em que mostra que o lucro já não passa necessariamente por aportes produtivos, e sim por diversos sistemas de apropriação e controle improdutivos ligados à financeirzação. A criação de valor e a apropriação de valor se desassociaram.[2]

A Mission Economy que aqui resenhamos tem uma guinada radicalmente propositiva, e nos interessa em particular nesses tempos em que o Brasil regrediu radicalmente. O exemplo usado por Mazzucato é o da Missão Apolo. Nos anos 1960, com J.F. Kennedy na presidência, os Estados Unidos assistiram atônitos aos russos mandarem para o espaço primeiro um satélite, depois o Iuri Gagarin, até uma cadela, a Laika, com ida e retorno seguros. A reação não foi um projeto governamental, mas uma “missão” nacional, envolvendo o governo como promotor político, bem como centros de pesquisa, universidades, inúmeras empresas dos mais diversos setores. O impressionante sucesso, com um homem na lua, não foi resultado de primazia do governo ou do setor privado, na guerra absurda que hoje enfrentamos, mas uma articulação política, financeira e tecnológica dos mais variados setores da sociedade. Ou seja, a sinergia, confluência de diversas áreas em torno a um objetivo comum, gerou um sucesso impressionante.

Essa ideia, do potencial do que podemos fazer como humanidade ao nos unirmos em torno aos grandes objetivos sociais, é o núcleo do que a autora desenvolve e detalha no livro. Na era da sociedade complexa, de desafios sistêmicos, a colaboração é simplesmente mais eficiente. Não se trata apenas da dimensão econômica, mas da geração de um entusiasmo mobilizador em torno do que queremos atingir. E precisam ser objetivos suficientemente amplos para que possam mobilizar o conjunto da sociedade. Ainda que nos alimentem diariamente com visões de um Bezos, Buffett, Jobs ou outros heróis do sucesso individual, na mística antiga do cowboy solitário, a realidade é que hoje precisamos de sistemas colaborativos e de sinergia organizada, para voltarmos a ter rumos na sociedade. Esperar que os “mercados” consigam equilibrar magicamente as diversas dinâmicas de uma sociedade complexa, que enfrenta desafios sistêmicos, é simplesmente ridículo, ainda que sirva a interesses mais estreitos.

“Este livro adotou a ideia, que considero imensamente poderosa, de usar as missões para atacar os problemas “perversos” com que nos defrontamos hoje. Argumento aqui que o combate a grandes desafios só será exitoso se reimaginarmos o governo como um pré-requisito para a reestruturação do capitalismo, de modo a torná-lo inclusivo, sustentável requisito e inovador.”(196) Enquanto tantos livros descrevem as desgraças da humanidade e os desafios que temos de enfrentar, Mazzucato se concentra no processo decisório correspondente. Isso é fundamental, na medida em que na sociedade de hoje sabemos o que deve ser feito, inclusive com objetivos sistematizados nos ODS, temos as tecnologias, e temos os recursos financeiros necessários. Mas não conseguimos gerar a governança correspondente.

“Primeiro e acima de tudo, isso envolve reinventar o governo para o século XXI – equipando-o com as ferramentas, organização e cultura necessárias para impulsionar a abordagem orientada por missões. Também envolve introduzir a noção de propósito no cerne da governança corporativa, priorizar o valor para os stakeholders em toda a economia e transformar o relacionamento entre os setores público e privado e entre ambos e a sociedade civil, para que trabalhem em simbiose em prol de um objetivo comum. A razão para a ênfase em repensar o governo é simples: apenas o governo tem a capacidade para promover a transformação na escala necessária. O relacionamento entre os agentes econômicos e a sociedade civil revela nossos problemas no nível mais profundo, e é isso que devemos desvendar. ”(196)

Com o domínio das corporações financeiras no mundo atual – só lembrando que a BlackRock administra 10 trilhões de dólares, o equivalente à metade do PIB dos Estados Unidos (21,5 trilhões) – resgatar a sua utilidade social tornou-se essencial: “Como argumentei neste livro, isso envolve enfrentar um dos maiores dilemas do capitalismo modernos: reestruturar os negócios de modo que os lucros privados sejam reinvestidos na economia, em vez de direcionados para objetivos financeirizados de curto prazo.” (198)

A revolução digital também exige novas formas de organização. “Outra área importantíssima são as plataformas digitais. Como gerir as plataformas digitais de modo a fomentar a criação de valor para a maioria dos cidadãos, em vez de apenas gerar lucros privados para uns poucos, é o grande tema da atualidade…Empresas como Amazon e Google detêm enorme poder de mercado. O problema é que elas cada vez mais têm usado esse poder para extrair o que tenho chamado de “rentas algorítmicas” (algorithmic rents)[3] num sistema capitalista moderno que mais parece um “feudalismo digital” – a capacidade de usar algoritmos para manipular o que as pessoas veem e querem.” (189)

Isso envolve uma inversão profunda, tanto nas corporações como nos governos: pensar a economia a nosso serviço. ”Grande parte da atual análise econômica tende a focar nas dívidas e nos déficits públicos. Mas uma abordagem orientada por missões traz uma nova maneira de ver as coisas. Fazer a economia trabalhar para os objetivos sociais, em vez de fazer a sociedade trabalhar para a economia, exige reverter a maneira como se avaliam os orçamentos hoje. Devemos começar com a pergunta “O que precisa ser feito?” e, então passar para a questão de como arcar com os custos.”(162) A abordagem lembra muito a missão “Fome Zero” que articulou tantos programas no Brasil e permitiu grandes avanços.

Não são sonhos, são transformações que teremos de adotar cedo ou tarde, conforme se aprofundam os desastres sociais e ambientais, e se desarticulam as democracias. Mazzucato resume as mudanças necessárias em torno a sete eixos: o conceito de valor centrado na utilidade pública, mercados articulados com os outros atores sociais, formas de organização mais centradas na colaboração, finanças reorientadas para o que é necessário para a sociedade, processos de distribuição que enfrentem a desigualdade, promoção de parcerias para o bem-comum, e participação dos atores envolvidos. (165) Não são regras simplificadas, a autora aprofunda cada um dos pilares, e o resultado é uma visão não de algum sonho no futuro – os vários “ismos” segundo as ideologias – mas medidas viáveis de reorientação em torno às prioridades humanas.

Mariana Mazzucato é hoje uma autora de referência no mundo, pela forma como ultrapassa as eternas discussões sobre teorias econômicas herdadas do passado, e se vincula à corrente que se deu conta de que o mundo mudou, de que o capitalismo funciona de modo diferente da era industrial, de que precisamos de novas regras do jogo. Uma leitura em nenhum momento atolada em economicismo, centrada em medidas concretas para nos tirar do atoleiro. Uma leitura que vale muito a pena, em particular para não-economistas.


Notas

[1] Resenha: https://dowbor.org/2019/10/mariana-mazzucato-the-entrepreneurial-sate-debunkiong-public-vs-private-sector-myths-anthem-press-new-york-2015.html

[2]Resenha: https://dowbor.org/2021/02/the-value-of-everything-making-and-taking-in-the-global-economy-publicaffairs-2018.html

[3] Na edição brasileira, o texto é “rendas algorítimicas”, pois “renta” não esta no dicionário. Mas renda é income, enquanto rent¸ que gera rentismo, precisa do seu equivalente em português, “renta”. Em francês é igualmente diferenciado revenu, que é renda, diferente rente, que se refere a ganhos sem contribuição produtiva correspondente. Personagens de Machado de Assis viviam “de rendas”, como hoje os novos capitalistas. É tempo de nos atualizarmos com este conceito de “renta”, base do rentismo improdutivo.

Uma resposta

  1. Excelente dica. Já li os dois anteriores, com muitas surpresas e aprendizado, em relação à interpretação dominante. Obrigado professor pela sugestão. Como sempre, muito útil para quem quer evoluir intelectualmente.

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