O que os gestores públicos municipais precisam saber?
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O que os gestores públicos municipais precisam saber?

Marcélio Uchoa publicou um livro importante sobre o problema chave das finanças municipais no Brasil. Participei de sua banca de doutorado em 2019, e escrevi o prefácio. Vale muito a pena, se os municípios não funcionam, o país não funciona.
Autor
Marcélio Uchôa
Tamanho
374 páginas
Originalmente publicado
CRV
Data
1 de janeiro, 2021
o que os gestores publicos precisam saber

Prefácio por Ladislau Dowbor – Adquira o livro aqui.

Marcélio Uchoa nos traz uma contribuição muito importante, e não faço esse comentário de maneira leviana, por simpatia. É porque apresenta argumentos bem sistematizados sobre um dos nossos desafios mais importantes, e pouco comentados: a Constituição de 1988 atribuiu generosamente aos municípios amplas tarefas, mas manteve no nível federal o controle dos recursos correspondentes. Este pacto federativo deformado simplesmente não funciona. E nos últimos anos, essa deformação apenas tem se agravado.

A base populacional, política e econômica do país – o município – ficar em grande parte na dependência da generosidade de uma emenda parlamentar, do interesse político de um ministro, leva, na expressão do autor, a um novo tipo de coronelismo. A fidelidade para com os de cima passa acima dos interesses dos administrados. Some-se a isso a burocratização do processo, e o resultado é o travamento do desenvolvimento. Em termos propositivos, trata-se de defender “uma reforma fiscal e tributária no Pacto Federativo Brasileiro”. (199)

Somos um gigante territorial, dividido em 5.570 municípios, de tamanhos que variam de 160 mil (Altamira) a 3,6 quilómetros quadrados (Santa Cruz, em Minas Gerais), com populações extremamente diferenciadas, culturas regionais diversificadas, bem como necessidades e potenciais profundamente desiguais. Tentar fazer esse conjunto funcionar a partir do governo central é simplesmente inviável e a instância estadual não resolve. Precisamos gerar uma política de desenvolvimento local no sentido pleno.

E não se trata evidentemente apenas dos municípios: se os municípios não funcionam, é o país que não funciona. Da mesma maneira, se as empresas não são bem administradas, a economia no seu conjunto não irá funcionar. É sem dúvida essencial, na eternamente adiada reforma tributária, fazer com que os ricos paguem mais e a massa da população receba mais. Mas é igualmente essencial saber como se estrutura, em termos territoriais, o processo decisório sobre a cobrança e o uso dos recursos.

Não estamos aqui nos referindo a alguma tecnicalidade administrativa. Trata-se na minha convicção de um desafio fundamental do país. Debatemos muito sobre o tamanho do setor público em geral – falar mal do Estado sempre rende em teremos eleitorais – mas muito pouco sobre onde efetivamente se toam as decisões. Temos uma população de 210 milhões de habitantes, e 86% morando em cidades. Abre-se, obviamente, um imenso potencial de tornar os munícipes donos das suas vidas. Não há nenhuma dificuldade material em conectar adequadamente todos os municípios, inclusive os mais pequenos, numa rede nacional de banda larga: ou seja, o pequeno município deixa de ser uma unidade isolada, e passa a pertencer a uma rede interativa, mas com mais protagonismo.

A aglomeração urbana permite muito mais racionalidade no uso dos recursos, pois ninguém melhor que o residente sabe que córrego está contaminado, que rua vira lama quando chove. O argumento de que o município não tem capacidades técnicas favorece sem dúvida as grandes empreiteiras e as soluções centralizadas, mas já não reflete a realidade, inclusive porque muitos municípios pequenos se articulam em consórcios intermunicipais. Já ouvi comentários no nível federal de que a descentralização dos recursos facilitaria a corrupção. Esta preocupação do governo central em manter o controle dos recursos do país no topo, para evitar a corrupção, comove, mas não convence. Nada melhor para evitar a corrupção do que aproximar a decisão sobre o uso dos recursos dos que deles vão se beneficiar.

Em termos de funcionamento do país em geral, a realidade é que quando os recursos são muito centralizados, como é o caso no Brasil, os municípios, que é onde se situam as empresas e as organizações da sociedade civil, não funcionam pela dificuldade de acesso aos recursos nos níveis superiores de governo, enquanto o governo central, onde ministros e parlamentares ficam discutindo a quem favorecer com pequenos favores, não funciona a política de esfera nacional. A centralização prejudica tanto o governo central como o local. 

O estudo de Marcélio Uchôa é centrado nos municípios de até 50 mil habitantes, o que representa 88% dos municípios do país, e mais de um terço da população. Dar condições de gestão local adequada para esse conjunto de unidades administrativas é essencial. Isso implica inclusão digital adequada, apoio tecnológico, formação de quadros para a gestão local, organização de informações gerenciais, pesquisa dos potenciais subutilizados, geração de políticas de inclusão produtiva e assim por diante. Tudo isso envolve recursos. Um sistema em que a responsabilidade migrou para baixo, enquanto o dinheiro se gere em cima, simplesmente não funciona.

Atentar para a dimensão municipal das políticas públicas é essencial. Os funcionários públicos municipais representam hoje a metade do funcionalismo brasileiro. (246) Esse número tende a crescer, pois os setores econômicos de maior peso, que já foram agricultura e indústria, hoje são constituídos pelas políticas sociais: saúde, educação, segurança, saneamento básico e semelhantes. São serviços que não se importam da China, não se trazem de caminhão: são atividades capilares, que têm de chegar a cada bairro, cada família, cada criança, de maneira diferenciada, e dependem por tanto vitalmente da capacidade de gestão local.

As economias desenvolvidas se urbanizaram muito antes de nós, e geraram capacidades locais de administração que podem nos inspirar. Os alemães colocam as suas poupanças em sparrkassen, caixas de poupança municipais, que servem para financiar iniciativas das próprias comunidades. E os recursos recolhidos pelos impostos são em grande parte diretamente repassados aos municípios, que passam assim a ter uma dupla fonte de financiamento, sem precisar buscar autorizações e apoio político a cada passo que dão.

Na Suécia, mais de dois terços dos recursos públicos são diretamente repassados aos municípios. Arthur Kroeber, no seu China’s Economy, constata que a China tem um sistema centralizado em termos de grandes rumos políticos, mas rigorosamente descentralizado em termos de financiamento e gestão, mais do que a Suécia, segundo as suas próprias palavras. O princípio administrativo nos países que funcionam, a subsidiariedade, implica que apenas suba para escalões superiores da administração o que não pode de maneira alguma ser resolvido localmente.

O poder local, escreve Uchôa, “tem os elementos estruturantes na federação brasileira dada a maior proximidade entre governantes e governados. O Município é o pilar da organização política democrática, visto que nele ocorre a verdadeira relação estreita entre o Poder Público e Sociedade Civil. ” (253)  A grande desburocratização não consiste em reduzir o número de ministérios, farsa que apenas coloca a mesma máquina sob controle de outro ministério. Consiste em assegurar o real protagonismo do município, com os meios correspondentes.

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