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Decodificando as cifras

Quantos mortos mais serão necessários para que o país saia desta letargia política e besteirol econômico? O artigo de Madeleine de Paula Lima traz uma curta e competente análise do absurdo desvio de recursos públicos, que são hoje necessários para ampliar o SUS e resgatar a nossa capacidade de enfrentamento da pandemia.
Autor
Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima
Tamanho
2 páginas
Originalmente publicado
Data
13 de julho, 2020

Em época de preenchimento da declaração do imposto de renda penso sobre os gastos em saúde e a relação cidadão-Estado-SUS, a relação consumidor-convênio particular de saúde, e as deduções com gastos médicos para chegar no imposto devido. Contratei convênio médico em 1989 quando o Sistema Único de Saúde ainda estava se organizando. Era a solução individual em vista da queda na qualidade no atendimento no serviço público, inclusive daquele dos funcionários públicos. A partir de 1961, tive direito, sucessivamente, ao IAPI, ao IAPB e a médicos credenciados pelo IPESP e contamos com ótimo atendimento no Hospital do Servidor Público, onde meu filho nasceu em 1980.

No Brasil, o funcionamento de planos de saúde começou na época da instalação das indústrias automotivas no governo Juscelino Kubitscheck. Em especial, depois do golpe de 1964, as mudanças operadas no âmbito da medicina previdenciária acabaram promovendo o funcionamento dos planos privados de saúde. Em 1966, a criação simultânea do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) e do Sistema Nacional de Seguros Privados (SNSP) demonstrou claramente essa nova orientação, uma mudança radical em relação ao sistema anterior de atendimento público, que se iniciara nos anos 30 (vide Carlos Octávio Ocké-Reis et al. O mercado de planos de saúde no Brasil: uma criação do estado?). Indicou a guinada do Estado para promover a livre iniciativa, estimulada pelos interesses econômicos dos empresários e do sistema financeiro alinhados com o desmonte gradativo da política de apoio ao Estado de Bem-Estar Social, para atender a agenda da economia neoliberal, ou globalização econômica, que passou a pressionar a política dos governos no Brasil desde a época dos governos militares em 1964.

Entre o fim de 70 e início de 80, a lenta abertura política estimulou a sociedade a manifestar fortes sinais de descontentamento, principalmente, diante da crise econômica do início dos anos 80 que desvendou a falsidade do “milagre econômico”, que se sustentara exclusivamente no crescimento econômico, deixando de cuidar da questão da pobreza e da desigualdade no Brasil. A mobilização social em torno do projeto das “Diretas Já”, embora derrotado com pequena margem no Congresso com as articulações do “Centrão”, prosseguiu atuante nos trabalhos preparatórios da Constituinte para incluir na proposta uma série de direitos, incluindo os direitos sociais, alguns aprovados e reconhecidos pela Constituição de 1988, que contribuiram para caracterizar o Brasil como um Estado Democrático Social de Direito. No entanto, houve fortes pressões contrárias à concretização dos avanços democráticos, interessadas em acompanhar a agenda da economia neoliberal que se fortalecera. São perceptíveis as inúmeras tentativas de retrocesso nas políticas públicas para garantir os direitos sociais no decorrer dos anos e, com mais intensidade, nos últimos quatro, e com perspectivas atualmente menos favoráveis.

A Constituição inovou a filosofia de seguridade social com medidas destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde (direito universal, integral), à assistência social (para quem dela necessitar) e à previdência (de caráter contributivo), com iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade. Trata-se de um conjunto de políticas públicas que visa garantir o bem-estar, o amparo e a justiça social no Brasil em coerência com os objetivos fundamentais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e, principalmente, fortalecer o respeito ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde (arts. 1º, inc. III, 3º, I e III, 194 a 204, CF).

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A obra do norte-americano Tony Ruth traz quatro imagens ilustrando os conceitos de desigualdade, igualdade, equidade e justiça.

As bases do Sistema Único de Saúde (SUS) foram lançadas em 1986 na 8ª Conferência Nacional de Saúde e formularam a proposta do SUS na Comissão Nacional da Reforma Sanitária, que embasou o debate constitucional em 1988. O SUS foi criado junto com a Constituição Federal para efetivar o direito fundamental à saúde de todos, cabendo ao Estado a sua garantia mediante políticas públicas. Constitui uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços públicos de saúde integrados num sistema único, e financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Abrange o trabalho dos vários estabelecimentos de saúde, centros, postos, hospitais, laboratórios, hemocentros, serviços de vigilância sanitária, epidemiológica, ambientais, e fundações e institutos de pesquisa públicos.

O SUS é um sistema de atendimento integral, considerando que cuida desde a prevenção (vacinas, pré-natal, etc), o tratamento e a hospitalização, e também universal, pois está disponível para todos independente de contribuição para a previdência social e sem contraprestação pecuniária direta. Desta forma, tem caráter de inclusão social. Entre o SUS e o beneficiário existe uma relação administrativa-constitucional de cumprimento pelo Estado da obrigação de atender o direito subjetivo à saúde de cada um e de todos, como interesse difuso.

Por sua vez, o sistema privado de saúde atende apenas seus associados que pagam as mensalidades dos convênios e com a limitação para as situações previstas nas cláusulas do contrato. Os usuários dos serviços privados mantêm uma relação de consumo de assistência à saúde, com os limites estabelecidos nele. Sob este ângulo, tem caráter excludente, ao não atender os vulneráveis e por deixar de atender o que não estiver previsto no contrato. A Constituição permitiu a atividade privada na assistência à saúde e as leis n. 9.656/1998 e n. 9.961/2000 dispuseram sobre os planos e seguros privados de saúde e sobre a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS para estabelecer os padrões dos planos e promover a defesa do interesse público.

Cerca de 20% do faturamento dos seguros privados de saúde são provenientes de subsídios governamentais e estima-se que a renúncia fiscal com a dedução de despesas médicas na declaração do imposto de renda chega a 10 bilhões de reais por ano (vide Eduardo Jorge M. Alves Sobrinho e Maria Fátima Sousa. Este jogo não pode ser 1 x 1: a trajetória política de saúde no Brasil. In Eduardo Bueno da Fonseca Perillo et al (org.), Para entender a saúde no Brasil. São Paulo: LCTE Ed., 2011).

O SUS é disponível a 200 milhões de pessoas no Brasil, sendo dependentes dele diretamente 160 milhões de pessoas sem convênios particulares. Para desempenhar estas atribuições amplas, o SUS depende do aporte financeiro nos orçamentos públicos. As críticas ao atendimento do SUS deveriam ser debitadas aos setores responsáveis pela alocação dessas verbas, pois o texto constitucional não assegurou uma vinculação específica de recursos para a saúde e a destinação de suas finanças ficou a depender das verbas para a saúde nos orçamentos públicos.

O implemento das diretrizes constitucionais, regulamentadas em 1.990 pelas leis 8.080 e 8.142, vem sofrendo obstáculos impostos pela política de Estado em todos os governos, que são apontados pelo professor Nelson Rodrigues dos Santos, do Movimento dos Defensores do SUS, a saber: financiamento federal insuficiente (subfaturamento), subsídios federais para os planos de saúde privados (deduções do imposto de renda da pessoa física), desigualdades regionais dos investimentos, entraves causados pela Lei da Responsabilidade Fiscal (LC n. 101/2000) para setores básicos, como saúde, educação e assistência social, que dificultam o cumprimento de gastos com pessoal necessário para atender esses setores (vide Nelson Rodrigues dos Santos. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte e a busca de saídas). O Conselho Nacional de Saúde e associações do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública apresentaram à Câmara dos Deputados em agosto de 2013, minuta de lei de iniciativa popular, subscrita por quase 2 milhões de pessoas, para destinar, no mínimo, 10% das receitas correntes brutas da União para o financiamento da saúde, alterando as regras da LC n. 141/2012 a respeito (Ato em Defesa da Saúde Pública, 10/4/2012).

Para uma visão restrita de finanças públicas, a lei de responsabilidade fiscal representou um indubitável avanço no processo de ajuste do endividamento e melhoria do perfil da dívida pública. No entanto, a aplicação de verbas para a saúde, em especial para o SUS, perpassa pela análise da porcentagem da dívida pública no orçamento e dos limites permitidos para ela, pois a defesa do ajuste fiscal, sob o manto aparente da austeridade, objetiva reduzir a relação dívida pública com o PIB com o congelamento das despesas primárias, que incluem os gastos sociais, como a saúde, aumentando o superávit primário e destinando-o para o pagamento dos encargos financeiros da dívida interna, ou seja, amortização de juros (vide Ana Maria Costa, “A saúde em tempos de golpe”).

A EC n. 86/2015, a “emenda do orçamento impositivo”, afetou ainda mais o destino de verbas para o SUS, pois consolidou o subfinanciamento do sistema ao reduzir o aporte financeiro, apesar de atender ao aspecto da vinculação orçamentária para a Saúde (vide Élida Raquel Mercês da Silva e Adelmo Torquato da Silva). No ano de 2016 a dívida pública brasileira correspondia a 69,95% do PIB e, em 2017, a dívida pública passou para 74,04% do PIB (vide Dicionário Financeiro).

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A partir de 2016, os indicadores oficiais têm revelado de forma mais clara a destinação de verbas dos orçamentos federais consultando os dados dos juros nominais, “Dados do Tesouro Nacional – Série Histórica de 2016 a 2019”, que apontam para o aumento drástico na rubrica “juros nominais”. Esclarece o professor de economia Ladislau Dowbor que, a partir de 2016, vêm sendo tomadas medidas que “tiveram como denominador comum o travamento da renda e do acesso aos bens de consumo coletivo pelo grosso da população, enquanto se expandia radicalmente o lucro dos bancos e dos grandes aplicadores financeiros”. (…) Se vocês consultarem o site do Tesouro Nacional vão constatar que o governo tem transferido em juros, essencialmente para bancos e outros aplicadores financeiros, entre R$ 300 e 400 bilhões por ano, dinheiro que precisamente deixou de ir para educação, segurança e o SUS”. Nem sequer foram aplicadas para equilibrar as contas do governo (vide “Além do Coronavírus”, Ladislau Dowbor, em Le Monde Diplomatique Brasil, 23/3/2020; Tesouro Nacional)

No governo de Michel Temer, em 15/12/ 2016, a EC n. 95, chamada de “lei do teto de gastos”, congelou os gastos da União com despesas primárias por 20 anos apenas corrigidos pela inflação medida pelo IPCA. Está havendo “um movimento geral de desconstrução de políticas públicas. (…). isso é uma tragédia anunciada num país muito desigual, e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo”, afirma Dr. Gastão Wagner de Souza Campos, ex-presidente da ABRASCO (vide Marina Amaral). Várias ações diretas de inconstitucionalidade foram impetradas por partidos políticos contra essa emenda, por considerar que feriu o núcleo essencial do direito à saúde (ADIs ns. 5658, 5680 e 5715).

Levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos aponta que, em 2019, o SUS teve verba semelhante àquela do ano de 2014 e que a aprovação da emenda do teto de gastos reduziu políticas sociais que poderiam ter protegido melhor a população mais vulnerável durante a atual epidemia da Covid-19, se tivessem sido aplicadas no SUS (vide G1).
Auditoria Cidadã da Dívida divulga o gráfico do orçamento federal de 2019.

Entre as propostas apresentadas na Câmara Federal pelo ministro Paulo Guedes, em 5/11/2019, aparece a Emenda Constitucional do Pacto Federativo, que tem entre os objetivos permitir que Estados e Municípios incluam os gastos com trabalhadores inativos da saúde (e da educação) no cálculo dos valores mínimos nestas áreas. Isto significaria reduzir ainda mais o percentual de investimento real na saúde (e na educação). Em março de 2020, já na fase da pandemia da Covid-19, o ministro Guedes indicou esta emenda como uma das soluções para resolver os efeitos econômicos da pandemia, sem se preocupar com as necessidades do trabalho do SUS para a população, pois continua sua intenção de reduzir as verbas para a saúde (e para a educação), com a ECPC apresentada em novembro.

A pandemia da Covid-19 irrompeu neste quadro de gradativa diminuição de verbas para o SUS e escancarou as dificuldades econômicas de milhões de pessoas em manter o isolamento social, sem o aporte imediato e eficaz de auxílios emergenciais, criando grande angústia. Em várias ADIs, sendo relatora a ministra Rosa Weber, os partidos PDT, o PSOL e o PT e partes interessadas pediam, em março de 2020, a suspensão imediata, por meio de liminar, dos efeitos de parte da EC 95/2016 para que o teto de gastos não fosse aplicado à área de saúde pública em razão da pandemia e para possibilitar maior capacidade de atendimento.

Dentre as verbas emergenciais prometidas pelo governo Jair Bolsonaro para combater a pandemia da Covid-19, o repasse real foi extremamente reduzido e demorado. O Ministério Público Federal verificou que apenas 6,8% dos recursos disponíveis haviam sido gastos e os repasses aos Estados e Municípios foram drasticamente reduzidos, pelo que abriu inquérito civil público para apurar (vide Agência Estado).

No início de junho, ganhou repercussão no país o veto presidencial ao Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória-PLV 10/2020 (lei n. 14.007), com a suspensão de R$ 8,6 bilhões destinados à saúde, que seriam alocados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para gastar, neste ano, para a aquisição de materiais de prevenção à propagação da Covid-19, na proporção de 50% para Estados e o DF e de 50% para os Municípios. Várias entidades da saúde assinaram uma “Nota contra o Veto ao Repasse Financeiro para o SUS” (vide Senado Notícias e ABRASCO)

Enquanto lentos os gastos das verbas emergenciais no Brasil, aumentam os casos de pessoas com a Covid-19, a saber: 1.408.485 infectadas; 790.040 recuperadas, 558.789 casos ativos; 59.656 falecidas, e 8.318 em situação crítica (vide Worldometer, acessado em 30/6/2020). É possível avaliar o esforço das equipes médicas do SUS na linha de frente dos atendimentos, nas UBS e nas UPAs, nas vigilâncias sanitária e epidemiológica, entre outros. A Covid-19 demonstrou a essencialidade do Sistema Único de Saúde, que, apesar da crescente perda de receitas, se revelou uma estrutura capaz de responder à população nesta fase aguda, merecendo o reconhecimento de organismos como a Organização Mundial da Saúde e outros. O SUS é uma necessidade básica para uma população aproximada de 160 milhões de pessoas, mas a pandemia mostrou que a população toda se beneficia, pois há doenças que se disseminam e alcançam as pessoas que têm convênios médicos particulares. Aplicar mais verbas no SUS é um investimento necessário para a saúde pública, e não um gasto a ser questionado.

O histórico dos avanços e recuos no fortalecimento do SUS indica uma constante luta entre duas posições que se digladiam, afirmadas pelo Dr. Nelson Rodrigues dos Santos, como consequência: “(…) de dois contextos: um internacional, de “engendramento da globalização neoliberal, da financeirização dos orçamentos públicos e do desmanche dos Estados de Bem-Estar Social – Ebes”, e outro nacional, “no rumo oposto do esgotamento da ditadura, com imensa mobilização da sociedade pela democratização do Estado e aprovação na Constituição do Título da Ordem Social, explicitamente de Ebes”. Para a implementação plena do sistema falta “a conscientização/mobilização democrática das maiorias na sociedade, capazes de elevar o pacto social a patamar mais civilizado e a um Estado com novas estratégias e prioridades” (vide Victor Necchi). Esta conscientização deve nortear o compromisso coletivo para apoiar o fortalecimento do SUS, nas palavras do professor Dr. Gastão Wagner de Souza Campos, outro grande defensor, que afirma: “a expansão do SUS não se dá conforme a vulnerabilidade da população; se dá conforme a capacidade de pressão política”.

Serão as novas gerações de equipes que continuarão o esforço realizado pela geração dos anos 80, que criou este Sistema de Saúde junto com a Constituição-Cidadã, mas seu fortalecimento dependerá principalmente da capacidade de pressão política da população para exigir dos governantes, políticos e candidatos a cargos eletivos, ações efetivas para ampliar este sistema de atendimento público à saúde.

Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, membro do Conselho Fiscal do IBAP, mestre em Direito do Estado, mestre em Ciências e auditora-tributária fiscal da PMSP, aposentada.

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