Wallace-Wells escreveu um livro que está dando nas pessoas um tipo de “choque de tempo”, The Uninhabitable Earth: a story of the future , traduzido no Brasil por A Terra Inabitável: uma história do futuro. Todos andamos preocupados com a mudança climática, hoje com exceção de gente que acredita que vacina gera autismo, que o planeta Terra é plano, que o mundo foi criado há alguns milênios no espaço de seis dias e crenças semelhantes. Mas as nossas preocupações parecem se diluir numa noção imprecisa do tempo que chamamos vagamente de “futuro’. Ou seja, sim, será uma catástrofe, mas é no longo prazo, e até lá Deus sabe o que poderá acontecer, ou que tecnologia salvadora vai aparecer. Neste livro, já traduzido no Brasil, o autor traz o futuro para o presente.
Não é imagem. A partir da leitura, eu me dei conta da dificuldade que temos em “sentir” o tempo que temos pela frente. As catástrofes previstas para 2050 parecem muito distantes, quase imprevisíveis, e as de 2100 quase míticas. No entanto, ao participar da festa do primeiro aniversário do meu netinho Leonardo, me dei conta que em 2050 ele terá 30 anos, e que em 2100 ele terá a idade desta pessoa que está escrevendo estas linhas. Ou seja, a escala de tempo em que estamos falando representa na realidade o curto espaço de uma vida. E se trata deste menino que tenho aqui, na minha frente, com suas bochechas e sorriso esperançoso.
A dimensão psicológica do tempo é até divertida. Com os meus alunos, discuto na primeira aula do semestre que artigo cada um terá de redigir. Para eles, como o artigo é para o fim do semestre, o tempo que “sentem” ter para pesquisar e redigir parece muito distante. No entanto, no pânico generalizado, duas semanas antes da entrega, olhando para trás, o semestre que estão concluindo parece que encolheu radicalmente. Mesmo para mim, a crise mundial de 2008 parece que foi ontem, estamos em plena discussão de medidas a tomar, mas o ano 2030, com idêntica distância em anos, encontra-se na minha mente na neblina das vagas possibilidades. No entanto, o tempo realmente existente é inexorável, e avança com rigor e rapidez.
Wallace-Wells trouxe para dentro do tempo sensível e previsível 12 eixos de transformação, todos ligados à mudança climática. Assim, traz os dados concretos das mortes que geram os excessos de temperatura que já vivemos hoje, da fome ligada aos impactos sobre a agricultura, das mortes por inundações que se observam em muitas partes, da expansão das áreas de queimadas florestais, da articulação dos diversos subsistemas de intervenção sobre a natureza, do esgotamento da água doce, da mortalidade nos oceanos, da contaminação do ar, do surgimento de novas pragas, do colapso econômico, dos conflitos climáticos, dos deslocamentos sistêmicos.
O autor não é catastrofista, simplesmente faz as contas, e em particular junta os dados que aparecem fragmentados em numerosas pesquisas dispersas, segundo as especialidades dos pesquisadores e das instituições de pesquisa, como por exemplo os estudos sobre as superbactérias resistentes, sobre a contaminação da água pelos agrotóxicos, o derretimento das geleiras e assim por diante. Juntou as peças e as articulou nos diversos ritmos de transformação. O resultado é um mapa extremamente concreto e perceptível do nosso amanhã.
O livro é muito bem documentado. Todos os dados apresentados estão amarrados com 65 páginas de notas e fontes, felizmente reunidas no fim do texto, que se torna ao mesmo tempo muito leve na leitura e solidamente referenciado. E precisamos disso, pela própria fragilidade, que vimos acima, da nossa percepção do tempo futuro. Esforços neste sentido não faltam, com James Lovelock que nos deu a “hipótese Gaia”, que apresenta o nosso pequeno planeta como um ente quase vivo no seu conjunto, com Buckminster Fuller que popularizou a imagem da “espaço-nave terra” para salientar a sua fragilidade e a necessidade de todos sermos tripulação que preserva, e não passageiros que se servem. E temos a tão simbólica imagem dos astronautas que se referiram à “bolinha azul” que viram do espaço, tão pequena e vulnerável. (227) Fortalecer o imaginário ajuda.
Wallace-Wells não é um sonhador, e se refere ao conceito de “aparato de justificativas” utilizado por Thomas Piketty. “Todas as alternativas terão de fazer face aos interesses corporativos enraizados e ao viés ‘status-quo’ de consumidores relativamente contentes com a vida que hoje levam” (180). “A mudança climática exige compromissos políticos muito mais amplos do que a fácil participação com simpatia retórica, confortável tribalismo partidário e consumo ético” (186). O que enfrentamos é “nada menos que um redesenho completo dos sistemas energéticos, de transporte, das infraestruturas, da indústria e da agricultura” (179). E isto aponta para “a necessidade de se gerar um sistema de governo global, ou ao menos cooperação internacional, para coordenar tal projeto”(178).
E as responsabilidades têm de ser colocadas onde cabem: “Atualmente, os ricos do mundo são donos da parte de leão da culpa: os 10% mais ricos produzem a metade de todas as emissões… As campanhas de desinformação e negação das corporações constituem provavelmente um caso mais forte de vilania. Uma performance mais grotesca de maldade (evilness) corporativa é difícil de ser imaginada, e dentro de uma geração, a negação sustentada por interesses do petróleo será provavelmente vista como uma das conspirações mais odiosas contra a saúde humana e o bem-estar perpetrada no mundo moderno” (149).
Eu, naturalmente, gostei em particular do capítulo intitulado “Crisis Capitalism”, em que o desvio financeiro (“endless financialization”) e a resistência de interesses corporativos aparece com força. O autor cita, entre outros, Paul Romer, “Nobel” de economia e economista chefe do Banco Mundial segundo o qual “a macroeconomia, esta ‘ciência do capitalismo’, era algo como um campo de fantasia, equivalente à teria das cordas, que já não tinha qualquer legitimidade em dizer que descreve corretamente os funcionamentos da economia real” (165).
A ideologia nisso? Acho que precisamos todos do choque de realismo que este livro traz. Não se deve negar os avanços das últimas décadas, como não se pode deixar de ver que os próprios avanços tecnológicos exigem mudanças profundas em termos de organização política e da governança corporativa que, em vez de avançar, têm regredido. E para pensar as formas de reorganização das regras do jogo nas nossas sociedades, nada como ter uma visão concreta e realista dos desafios.
O nosso tempo nisso? Trata-se “de um cálculo de cabeça bem limpa: o mundo tem, quando muito, cerca de três décadas para uma decarbonização completa, antes dos horrores realmente devastadores do clima começarem. Não há meio-termo no caminho da solução para uma crise tão ampla” (214). Três décadas. O meu Leo terá trinta e um anos.