Paulo Cannabrava Filho – A Governabilidade Impossível – Alameda Editorial (2018) – 316p. – ISNB 978-85-7939-565-9
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Paulo Cannabrava Filho – A Governabilidade Impossível – Alameda Editorial (2018) – 316p. – ISNB 978-85-7939-565-9

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
316 páginas
Editora
Ano

governabilidade impossivelPaulo Cannabrava tem história. Faz parte de uma geração de batalhadores que, quando veem surgir nas ruas personagens da classe média adornados de símbolos nacionais e munidos de panelas, quando são bombardeados nas mídias por mensagens de empolada indignação e de elevada moralidade, quando se lhes explica que a Constituição é estreita demais para os grandes interesses, e que portanto temos de dobrar a legalidade – reagem não com entusiasmo mas com memória. Quantas vezes já viram e já escutaram isso, sabendo que atrás dos discursos vêm a liquidação da democracia, o aumento dos privilégios, o desmonte do processo de desenvolvimento. Os movimentos que levaram Getúlio ao suicídio, as tentativas de golpe contra Juscelino, o golpe com uniformes militares em 1964, o golpe com gravatas e aparências parlamentares que hoje vivemos, todos se travestiram de elevada ética e dignidade. Quando sopram esses ventos, pessoas como Paulo Cannabrava já reconhecem, pelo cheiro, a podridão que avança. Esse filme, nós já vimos. Esses argumentos, nós já ouvimos. E as consequências desastrosas já as vivemos.

A ampla retrospectiva que Paulo traz neste livro nos permite ter um recuo relativamente ao caos e gritaria que hoje caracterizam a política no Brasil. Em nome de “consertar o país”, estão destruindo a democracia, entregando petróleo, terras e empresas, liquidando direitos dos trabalhadores, desarticulando políticas sociais básicas nas áreas de saúde e educação – enfim, gerando uma grande farra que articula oligarquias nacionais e interesses transnacionais, não mais contidos pelas instituições, por regras do jogo democráticas. Daí o título do livro se referir à governabilidade e à ruptura institucional. Quando se violam instituições, prevalece apenas a lei do mais forte. A máfia sempre soube se vestir com ternos elegantes, mas os procedimentos são simplesmente mafiosos. Os discursos são de ordem, mas o efeito é o caos.

O irônico é que hoje sabemos o que funciona: trata-se de organizar as instituições em função do bem-estar das famílias. Isso passa pelo aumento da renda da população em geral, pois a demanda ampliada estimula investimentos e produção, o que por sua vez aumenta o emprego. Tanto o consumo das famílias como a atividade empresarial geram mais receitas públicas, que permitem ao Estado financiar infraestruturas e políticas sociais, em particular saúde, educação, segurança. E a roda gira, é tão simples assim. Não é a austeridade, e sim a redistribuição, que permitiu a recuperação da economia americana atolada na crise dos anos 1930 (New Deal), que permitiu a prosperidade do pós-guerra da Europa (Estado de Bem-Estar), que assegurou o milagre da Coréia do Sul, ou ainda a dinâmica dos países nórdicos. A própria força econômica da China apoia-se essencialmente na ampliação do mercado interno. Fazer o bem para as pessoas faz bem para a economia, e para isso deve servir a política. Organizar a economia em torno dos interesses estreitos das oligarquias nunca resolveu nada. Vestir esses interesses do manto do interesse nacional é uma fraude.

A desigualdade é o mal maior. Em termos éticos, é indefensável, pois manter amplas esferas da população na miséria, quando temos tantos recursos, é vergonhoso. Ter voltado a aumentar a mortalidade infantil num país que tem a riqueza que temos é absurdo. Estamos num país que produz, em termos de bens e serviços, 11 mil reais por mês por família de 4 pessoas, o que permitiria a todos viverem de maneira digna e confortável, mas 1% das famílias do país tem mais patrimônio do que os 95% restantes, e 6 famílias têm mais do que 100 milhões de brasileiros na base da população. Essas minorias produziram tudo isso? Nem os pobres merecem a pobreza a que são reduzidos, nem os ricos merecem o volume de riqueza de que se apropriam. Reduzir radicalmente a desigualdade não é questão de esquerda ou direita, é questão de decência humana, e de inteligência política.

É também questão de inteligência social. Nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente com um nível tão profundo de desigualdade. Somos um país onde se comete 64 mil assassinatos por ano, onde a polícia mata 14 pessoas por dia, onde se aprisiona um ex-presidente sem provas, justamente para tentar conter as pressões sociais por uma vida mais decente para todos. Não estamos mais na idade média, na era da escravidão, na era feudal. A massa de pobres no Brasil e no mundo é hoje constituída por pessoas que são pobres mas não burras, e que estão putas da vida de não poderem comprar um remédio para o filho doente, de não poderem assegurar um hospital decente para a esposa parir, de não poder ter uma escola adequada quando sabem que o futuro dos filhos hoje depende dos conhecimentos adquiridos. Com a massa de pobres que temos, a paz social, o ambiente construtivo, e uma política equilibrada não poderão funcionar no quadro de tanta desigualdade. Alguém precisará informar as nossas oligarquias de que estamos no século XXI. E os pobres já estão informados de que os recursos existem, de que não é por falta de recursos que sofrem, e sim pela sua concentração em mãos incompetentes. Não há democracia política que funcione sem uma base de democracia econômica.

E a desigualdade não funciona, evidentemente, em termos econômicos. Um bilionário que aplica 1 bilhão de reais em algum papel financeiro com modesto rendimento de 5% ao ano, estará ganhando 137 mil reais ao dia. Como não conseguirá gastar tanto a cada dia, o grosso do ganho é automaticamente reaplicado, gerando o chamado snowball effect, efeito bola de neve. Sem precisar produzir nada, em poucos anos terá as fantásticas fortunas que hoje alimentam o tal do 1%. O grande dinheiro apenas marginalmente resulta em investimento produtivo, pois as aplicações financeiras rendem mais, e exigem menos esforço. É o que tenho chamado de Era do Capital Improdutivo. Gera poderosos rentistas que desviam recursos financeiros da produção, mas que também se apropriam da política, fechando o círculo: é a ruptura institucional, como diz o título do livro, tornando a governabilidade impossível. O parasita consome o corpo que o alimenta. Killing the Host, matando o hospedeiro, é o título sintético e explícito de uma análise em profundidade publicada por Michael Hudson.

A tragédia do capitalismo parasitário, aliás título também de um livro recente de Zygmunt Bauman, é de não saber se conter, não por maldade, mas por natureza. Os que tentarem ser mais comedidos serão simplesmente engolidos por outros. A lógica é sistêmica. E a vítima não é apenas a sociedade. O aquecimento global, a liquidação da cobertura florestal, a poluição da água doce e dos mares, a liquidação da biodiversidade – perdemos 52% dos vertebrados do planeta em 40 anos – a multiplicação de bactérias resistentes pelo uso irresponsável de antibióticos, a esterilização do solo agrícola e tantos outros impactos do uso predatório e irresponsável dos recursos naturais fazem com que deixemos para os nossos filhos uma tragédia planetária. Este sistema não está funcionando nem para a humanidade, nem para a natureza.

Virar as costas para a política e deixar a bandidagem corporativa e financeira rolar solta, evidentemente, não resolve. Temos de retomar as rédeas do desenvolvimento. A equação a resolver é simples: estamos destruindo o planeta que nos nutre, em proveito de uma minoria que insiste em aprofundar o drama. Ou seja, temos de proteger o planeta, e assegurar o equilíbrio social. Isso envolve o resgate do controle dos recursos, assegurando que sejam utilizados para financiar as tecnologias e os processos produtivos sustentáveis, e envolve também a inclusão produtiva e retomada do desenvolvimento para reduzir a desigualdade. Ou seja, temos de resgatar instituições e governabilidade que permitam que o processo decisório sobre o uso dos nossos recursos seja orientado pelas prioridades reais, pelo que realmente importa. No nosso caso, um país socialmente equilibrado, ambientalmente sustentável, e economicamente viável. Nenhuma ditadura, bem ou mal disfarçada, poderá asseguras esse caminho. Temos de retomar e inclusive aprofundar formas democráticas de decisão sobre o nosso futuro.

Na realidade, mais do que uma crise gerada por uma nova leva de mafiosos – oligarquia que por razões misteriosas chamamos de elite – enfrentamos uma crise civilizatória muito mais profunda. Ao traçar o processo histórico de formação da nova direita, da expansão do neoliberalismo, de como os interesses da oligarquia foram se estruturando em partidos políticos e deformando as eleições, incluindo aqui o papel da mídia, do judiciário, dos bancos e outros atores centrais do processo político, Cannabrava abre uma perspectiva muito mais clara para entender os nossos desafios atuais. Mais que um livro de “política”, trata-se aqui de uma ferramenta para entendermos melhor as engrenagens do poder, e nos organizarmos para os inevitáveis enfrentamentos.

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