Entrevista a José Nunes: Como escreve Ladislau Dowbor
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Entrevista a José Nunes: Como escreve Ladislau Dowbor

Organizar ideias e transformá-las em ferramentas para ajudar outras pessoas a decodificar o mundo é muito estimulante. Hoje o meu blog transformou-se numa biblioteca virtual, utilizada por milhares de pessoas, todos os textos estão disponíveis, tanto os meus como os que me mandam, daqui ou do exterior, e de certa forma estou inserido num ambiente colaborativo de pesquisa e de “decodificação” desse nosso mundo complicado. Temas não faltam.
Autor
José Nunes
Tamanho
2 páginas
Originalmente publicado
Data
24 de maio, 2018

Car@s me fizeram perguntas sobre como eu trabalho, achei simpático, todos nós temos as nossas buscas e inseguranças. Uma olhada dos bastidores, pensar o próprio processo de pensar e escrever, sempre ajuda. Divirtam-se.

– Prof. Ladislau Dowbor

livros por ld

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Acordo seis e vinte, não por obrigação, mas por acordar. Sem despertador. Pego o último livro na minha ampla cama, e leio. Ler de manhãzinha, ainda sem demandas externas, o dia ainda silencioso, é uma maravilha. Leio talvez uma hora, uma hora e meia. A delícia da ducha, o generoso café da manhã, com diversos queijos e frutas, além do pão que eu mesmo faço, uma maravilha. Para não me atolar imediatamente no computador, vou cuidar dos passarinhos do bairro, espalho pelo jardim frutas e grãos, pela borda do telhado e nas plantas já aguardam periquitos, rolinhas, sanhaços, enquanto outros mais raros aparecerão durante o dia. E vou naturalmente dar uma olhada nas roseiras e outras plantas que tenho no jardim, inclusive os indispensáveis como louro, alecrim, salsa e semelhantes. Tipo nove horas, sem disciplina excessiva, sento para trabalhar no meu computador, em casa, numa biblioteca que abre para o jardim. É Vila Romana, bairro tombado, escapamos das incorporadoras e dos seus prédios, bem como dos prefeitos privatizantes. Pequeno comércio de dimensões humanas, e de pessoas conhecidas. Estou não apenas na minha casa, estou no meu bairro.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Eu só consigo trabalhar de manhã. Basicamente, as quatro horas entre nove da manhã e uma da tarde são as horas realmente criativas em termos de escrita. Mente limpa, corpo descansado, sou o inverso dos que trabalham noite adentro. Dou uma olhada nos e-mails e outras mensagens, mas rapidamente, apenas identificando o que são mensagens pessoais, de família, de alguns amigos. Se entro nos e-mails em geral aparecem demandas fragmentadas, vem a tensão das coisas atrasadas ou esquecidas, a mente se dispersa. Por isso, sempre que posso, jogo tudo que podemos chamar de gestão do cotidiano para a tarde, que é pouco produtiva e pode ser boa para diversas coisas que não exigem concentração prolongada. A noitinha cuido de um bom lanche, e assisto um bocado de TV, em particular a BBC com os seus noticiários, o TV5Monde com os seus excelentes programas de jornalismo investigativo, canais como Curta! ou Arte 1. Nunca vejo o Jornal Nacional, são injeções de ódio ideológico que fazem mal para o coração, eu preciso me cuidar.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Não só não tenho meta, como deixo a mente flutuar à vontade, posso interromper a escrita para pesquisar livros que me ajudem em algum tema e me inspirem melhor. Me acontece de escrever muito ou quase nada. Frequentemente a cabeça trava, e não sai nada. Interrompo e saio para o jardim, vou podar umas plantas, regar outras. De toda forma, sem muito planejamento, notei que escrevo uma hora ou hora e meia, e interrompo por meia hora para arejar a cabeça. Nada é muito planejado, busco respeitar o que a cabeça e o corpo pedem.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Essa pergunta já me foi feita por alunos. Repensando nas dezenas de livros que já escrevi, e um grande volume de artigos longos, a única constante é que não há padrão nenhum. O livro que escrevi sobre a Formação do Capitalismo no Brasil, há décadas, começou com um texto de umas dez páginas, com um parágrafo sobre cada uma das ideias-chave que eu iria desenvolver. E depois fui desenvolvendo cada parágrafo em capítulos. Era na época da máquina de escrever, o conjunto do que se escrevia tinha de ter sequência lógica da primeira à última página. Não havia copy/paste. Livros menores como A Formação do Terceiro MundoO que é Capital, ou O que é Poder Local, na linha dos que a Brasiliense publicava, era sentar e escrever de um tirão só, no ritmo aproximado de uma página e meia por dia. Escrever bem uma página e meia, assegurar a sequência lógica com o que já foi escrito e a abertura para os argumentos seguintes, verificar os dados e as fontes, não é pouco. O meu último livro, A Era do Capital Improdutivo, foi uma montagem a partir de um conjunto de artigos e pesquisas já realizadas: montei um monstrengo com uma lógica de conjunto, partindo do geral (mudanças planetárias) até os impactos no Brasil. Tinha assim as peças mal ajustadas, mas sequenciadas com lógica. E fui reescrevendo o conjunto, ajustando as partes, atualizando os dados, harmonizando o estilo. Basicamente três versões sucessivas até chegar a um texto aceitável, que por sua vez seria lido por amigos que provocaram novos ajustes. Este último livro é mais como utilizar peças do Lego para construir um caminhãozinho, do que a explosão de um poema escrito no meio da noite sob inspiração divina. Conclusão: nenhum padrão, ou padrões ajustados às circunstâncias e ao tipo de texto.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Lido valentemente por meio de depressão, ansiedades exacerbadas, perda de sono, sentimento geral de inutilidade, palavrões que surgem espontaneamente (em particular debaixo do chuveiro), e outras formas organizadas de enfrentamento. Nunca entendi como de repente tudo trava, nem porque de repente acordo com a cabeça limpa, surge na cabeça e com clareza uma ideia chave que irá destravar a sequência do texto, e volto à ativa sem ter entendido nada. Uma dinâmica curiosa é que quando tenho um texto difícil ou relativamente chato para escrever, e que exige datas de entrega, de repente me flagro escrevendo textos gostosos e que saem espontaneamente, um tipo de fuga que me leva a textos mais criativos porque estou fugindo do obrigatório. Mas muitos textos saem bons de maneira rigorosamente inversa, me fazem um pedido surrealista de um texto para daqui três dias, e na pressão consigo parecer um stakhanovista de primeira linha. Mas é raro.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Busco escrever um texto completo de maneira bastante contínua, sem reler o que vem antes, a não ser as últimas duas páginas ou o que seja da véspera, para manter o tom e o ritmo. O resultado é um texto bastante bruto, com repetições, capítulos mal ajustados, enfim, uma primeira versão. Ter essa primeira versão com o texto inteiro é fundamental. Isso porque se pensarmos um livro como uma obra de arquitetura, um prédio por exemplo, entre os fundamentos e as pilastras e andares é essencial assegurar os equilíbrios básicos. O ajuste das paredes internas, decorações etc. pode obedecer a um outro ritmo. Só vou ver os textos com outras pessoas depois de umas três ou quatro versões, as pessoas precisam ter uma compreensão bastante detalhada do formato final que busco para contribuírem de maneira útil, e não apenas com boas palavras de alento.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Eu migrei da máquina de escrever para o processador de texto já com quarenta anos, e com vários livros publicados, e a transição foi realmente bastante fácil e libertadora. Mas isso me permitiu ter um diferencial que valorizo muito: eu sou ambivalente, digamos assim, articulo de maneira muito organizada o mundo do papel e da caneta, o mundo dos textos no computador, os livros que compro e os livros que consulto online, os livros que publico em papel e que disponibilizo (sempre) online gratuitamente, na linha do Creative Commons.  Eu escrevo no computador diretamente, mas tenho na minha frente um bloco de papel em que vou marcando coisas a rever, a pesquisar, e em particular a “arquitetura” do texto, rabiscos com os pontos principais, para não perder o equilíbrio do conjunto.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

Eu recebo um fluxo regular de estímulos. Leio Le Monde Diplomatique Brasil, com excelentes artigos de fundo e recomendações bibliográficas, leio o Guardian online (em geral no tablet ainda na minha cama, o iPad eu chamo de iBed), vejo os programas de jornalismo investigativo na TV britânica ou francesa onde aparecem pesquisas sobre temas chave como os paraísos fiscais, a criminalidade corporativa, o controle mundial da mídia e temas semelhantes. Ao lado da TV eu tenho um caderno, o que aparece de muito interessante eu anoto, pois esqueço com facilidade os links apresentados. As ideias que surgem me levam a comprar os livros correspondentes (em geral pela Estante Virtual e muito pela Amazon), e as leituras tendem a convergir para um conjunto de ideias que de repente se transformam na minha cabeça num desenho, tal como imagino um arquiteto de repente visualizar um prédio diferente depois de ter visto diversas imagens e propostas tecnológicas. De toda forma, o livro surge de dentro de mim como uma estrutura complexa, mas que forma um conjunto coerente, nunca tenho a impressão de que EU estou produzindo essa visão, ela surge de um conjunto de processos inconscientes, que articulam e dão um formato geral a segmentos de informações que recebo. Deixar o cérebro trabalhar, inclusive durante o sono, é muito produtivo.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?

O que eu acho que mais facilitou a minha vida científica e os livros que escrevi, foi o respeito a mim mesmo. Nunca me forcei a ler coisas idiotas porque me dizem que são importantes, e raramente me meti em coisas que não “fluem” de maneira agradável dentro de mim. Eu hoje tenho uma vida confortável, mas modesta, meu carro tem vinte anos, mas gosto dele e cuido, e o fato de me contentar com uma vida modesta me traz uma imensa vantagem, a de poder mandar à merda um chefe que me destrata, ou de recusar tarefas que me parecem sem sentido, ou sem valor ou utilidade social. Isso não mudou praticamente durante toda a minha trajetória de vida. Você poder mandar à merda pessoas ou propostas indecorosas gera custos financeiros, mas a satisfação é imensa. Eu acho que as pessoas que estrepam as suas vidas e a vida dos outros para se encher de dinheiro são um bando de falidos humanos. O meu imenso privilégio é de ter me limitado a fazer coisas que eu gosto. E acho que as pessoas que fazem as coisas que gostam tendem a fazê-las melhor. Eu não mudaria a minha trajetória, que aliás apresento num livro simpático que se chama O Mosaico Partido, apesar das dificuldades e sofrimentos. O livro está no meu blog, na íntegra.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

O que mais me move é entender o que acontece com a nossa sociedade. Sou um curioso e estudioso da imensa complexidade humana, desta impressionante capacidade que temos de feitos maravilhosos de criatividade e de generosidade, aliada e misturada com a escabrosa covardia e crueldade com a qual podemos tratar os nossos semelhantes. Eu rodei pelo mundo, dirigindo vários projetos das Nações Unidas, foram sete anos na África, projetos na Mongólia, na Nicarágua, em países ricos e pobres, e fui me familiarizando com a diversidade de soluções criativas que a humanidade encontra. O denominador comum é que as coisas funcionam onde as pessoas aprendem a colaborar, a construir não só projetos individuais, mas projetos comunitários. As pessoas não são naturalmente boas ou ruins, o contexto de organização social é fundamental. Cada vez que surge uma compreensão, na minha cabeça, de como funciona ou como poderia funcionar melhor uma cidade, uma comunidade ou um país, isso evolui naturalmente para um livro, um artigo, ou uma entrevista, ou ainda um curso. Agora estou trabalhando sobre o funcionamento da sociedade do conhecimento que surge com força. São novos desafios. Organizar ideias, e transformá-las em ferramentas para ajudar outras pessoas a decodificar o mundo é muito estimulante. Hoje o meu blog transformou-se numa biblioteca virtual, utilizada por milhares de pessoas, todos os textos estão disponíveis, tanto os meus como os que me mandam, daqui ou do exterior, e de certa forma estou inserido num ambiente colaborativo de pesquisa e de “decodificação” desse nosso mundo complicado. Temas não faltam.

Uma resposta

  1. Prof. Dowbor. Obrigada pela entrevista! Ler os seus textos tem sido para mim motivo de encorajamento. Ainda bem que existem pessoas como você para nos colocar na essencialidade da existência, no que realmente importa e sempre em busca do bem comum. Grata. Mil vezes grata.

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