Ladislau Dowbor – A praga da violência coletiva – fevereiro – 2015, 2p.
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Ladislau Dowbor – A praga da violência coletiva – fevereiro – 2015, 2p.

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
2 páginas
Originalmente publicado
Data

A praga da violência coletiva

A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e a justificam.


Ladislau Dowbor
26 de fevereiro de 2015

Stephen Melkisethian / Flickr

Nunca subestime o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos

Um aluno um dia me perguntou o que eu achava do homem: naturalmente bom mas pervertido pela sociedade, na linha do “bom selvagem” de Rousseau, ou esta desgraça mesmo que vemos por aí, em estado natural? Na realidade, não acho nem uma coisa nem outra. Acho que temos todos imensos potenciais para o bem e para o mal, para o divino e a barbárie. Cabe a nós, que trabalhamos com o estudo da sociedade e em particular das instituições, pensar o que faz a balança pender mais para um lado ou para outro. Pois deixando de lado alguns traumas e deformações individuais, domínio dos psiquiatras, aqui nos interessa a misteriosa bestialidade coletiva de grandes grupos sociais.

Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas dúvidas, pois sou de família polonesa, e vi refletido nas angústias dos meus pais o que tinham vivido frente ao nazismo. Ninguém irá pensar que os alemães eram um povo de baixo nível educacional ou cultural. E no entanto, com que entusiasmo vestiram as botas e as camisas negras ou marrons, com que elevado sentimento de dever cumprido matavam pessoas por serem diferentes, por um critério real ou imaginário. Cerca de 50% dos médicos alemães aderiram ao partido nazista. Isto é que é realmente preocupante. Estupidez é uma doença que pega.

Poder dar vazão ao que há de mais podre dentro de nós, de mais escuro em termos de ódio contido, de mais baixo em termos humanos, em nome de elevadas aspirações éticas, parece ser muito satisfatório. Os nazistas agiam em nome da pureza da raça. E erguiam bem alto a bandeira do “Gott mit uns”, Deus está conosco. Tornar-se de certa maneira o braço executivo da cólera divina parece ser profundamente agradável. Há gente disposta a morrer por esta satisfação.

Quem não leu O Martelo da Feiticeira, manual de interrogatório dos inquisidores católicos perdeu uma importante fonte de conhecimento sobre os nossos lados escuros. O manual recomenda, por exemplo, que os religiosos encarregados de torturar as possíveis feiticeiras as torturassem nuas, pois se tornam mais frágeis, e de costas para os torturadores, pois a era tal a perversidade destas mulheres que de frente para os torturadores poderiam comovê-los com suas súplicas e expressões de desespero. Eram religiosos, e o faziam em nome de Cristo.

Somos hoje mais civilizados? Sinto-me profundamente abalado, chocado, pelo bárbaro assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris, por profissionais da morte que matam em nome de Deus, e que claramente mostraram nos seus gritos que se sentiam como justiceiros que haviam cumprido o seu dever. São monstros? Se fossem, seria muito mais simples compreender e prevenir. Mas são seres humanos em torno dos quais se construiu uma muralha de valores que os protege de qualquer crítica. Se sentem pertencentes a uma comunidade que os apoia e recompensa, ou seja, praticam a barbárie em nome do bem. Podemos matar os terroristas, mas transformar a dinâmica que os forma é bem mais complexo.

Podemos tratar um psicopata, e proteger a sociedade dos riscos individuais. E uma sociedade doente? Quem não viu Os fantasmas de Abu-Ghraib, veja, é profundamente instrutivo. O documentário é montado a partir de selfies e de filmagens por celular de práticas de tortura no Iraque por jovens americanos, contra supostos inimigos. Tortura praticada no Iraque em nome da defesa dos direitos humanos, por um exército invasor, e por funcionários de empresas privadas de segurança terceirizadas para esta tarefa. Estes jovens são monstros? As imagens das torturas e dos risonhos rapazes circulam em todo o mundo islâmico. Com que impacto e efeito multiplicador?

Hoje temos tortura sistemática aplicada pelo sistema repressivo (Mossad, Shin Bet e outros) em Israel. Em Guantánamo quando os prisioneiros tentam morrer para escapar ao sofrimento se lhes introduz à força alimento pelo nariz ou pelo anus, tudo em nome do bem, como em nome de Deus os fanáticos do ISIS decapitam prisioneiros ou os do Boko Haram raptam crianças.

A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e organizam a sua expressão em nome da justiça, de Deus, da pátria, da pureza racial ou o que seja.

Créditos da foto: Stephen Melkisethian / Flickr

Fonte: https://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/A-praga-da-violencia-coletiva/5/32902

 

5 respostas

  1. Esse texto me interessou muito, sei que existem multiplos temas dignos de atenção e infinitamente mais agradaveis, a internet esta ai para mostrar. Esse é um tema desagradavel, ninguem vai conseguir atrair atenção, tentando entender as motivações da creuldade, a não ser que seja: como exterminar os cruies de forma cruel.
    Mas na verdeda, esse tema, é o que mais vale apena ser debatido na atualidade.
    Debatido até que se entenda, que a covardia está por trás de toda nossa desgraça e que a coragem é a unica solução.
    O homem não existe para sobreviver como bicho e nem para viver como coisa. O homem existe para viver… Como Homem!

  2. Senhor Dowbor,
    Tenho 16 anos e queria apenas adquirir novas ideias.
    Educação possui muita importância no papel do Estado, porém não é a solução para todos os problemas da humanidade de acordo com o texto, certo? (“Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas dúvidas…”), citando o exemplo da Segunda Guerra Mundial, quando um partido com ideias de superioridade para com as outras “raças” conseguiu convencer a maioria da população a lutarem a favor disso, inclusive a camada mais culta dessa sociedade. Pois, “Estupidez é uma doença que pega”. Tão logo essa afirmação é correta, quanto é possível transmitir o contrário dessa ideia para com o mundo, ou seja, educar o povo a ser mais altruísta.
    Logo, se ignorância é um adoecimento que se transmite, acredito que a educação inteligente é totalmente válida em situações de conflito, onde a resposta pode estar no ensimento do perdão por exemplo. Portanto, não seria possível passar esse valores aos governantes para que assim ele(a) saiba a importância de seguir princípios inteligentes de como se resolver conflitos? Lógico que não resolveria todos problemas globais, porém, a longo prazo, esse novo sistema de ensino não seria bem aceito e praticado pelo Brasil ou mundo?

  3. Ladislau Dowbor,
    O senhor dúvida que a educação possui a resposta fundamental para com conflitos no mundo (“Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas dúvidas…”) dando o exemplo da Segunda Guerra Mundial, quando membros de um partido com idéias de serem uma raça superior influenciaram parte da população culta a aderirem ao movimento. (“Ninguém irá pensar que os alemães eram um povo de baixo nível educacional ou cultural”). Mas, mesmo assim, essa ideologia estúpida de superioridade foi adotada por essa parcela da sociedade, pois, infelizmente, “Estupidez é uma doença que pega”. Se a esputidez consegue influenciar facilmente as pessoas, então seu oposto também atinge rapidamente e facilmente um determinado grupo. Logo, não seria possível transmitir inteligência para outras seres humanos, que assim estejam aptos a enxergarem um mundo mais igualitário e honesto? Portanto, não seria possível também transmitir essas ideias para governantes, tão logo entendiriam a importância de passar adiante o aprendido para seu povo?

  4. Professor, inicío comentando a afirmativa:”…aqui nos interessa a misteriosa bestialidade coletiva de grandes grupos sociais”. Trabalho com a socioeducação de adolescentes autores de atos infracionais.Preocupa-me compreender o sistema de organização social em que esses também são convocados a cumprir o dever, fazendo-se como justiceiros nas situações em que, por exemplo, alguém ultrapassou o limite territorial delimitado na sua própria comunidade de residência, resultando em muitas crianças e adolescentes impedidos de estudar. Atitudes que os fazem pertencentes, incluídos, estimulados, pelo apoio e recompensa.
    ” Estupidez é uma doença que pega”, por isso, contagia. É transmissível, infectuosa, como todas as formas de violência.
    “Transformar a dinâmica que os forma é bem mais complexo”. É mais fácil apenas qualificá-los: monstros.
    Vivenciamos, portanto, a praga da violência coletiva no nosso cotidiano. Que se apresenta de várias formas, pelo sistema de organização social. Nem sempre buscamos compreendê-las, estudá-las, para fundamentar o enfrentamento.

  5. Achei muito boa sua análise. A sociedade está doente e por isso, muito mais difícil medicar. Acho que por isso temos tantas religiões. Muitas “verdades” espalhadas para que haja uma diminuição de barbáries. Para que o povo não seja um. A torre de Babel foi uma forma de confundir e espalhar o povo já que unidos, faziam muitas besteiras. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus, ou seja, somos poderosos. Tanto para o bem quanto mal.

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