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Economia da água

Esse artigo é parte da coletânea  Administrando a água como se fosse importante”

Na lista das grandes heranças ameaçadas, estão a cobertura vegetal do planeta, o solo agrícola, a biodiversidade, a água, o próprio ar. A água é vital, e está se tornando um elemento chave do processo: a sua ausência, ou contaminação, leva à redução dos espaços de vida, e ocasiona, além de imensos custos humanos, uma perda global de produtividade social.

Ao contrário do petróleo, onde se dividem muito as opiniões sobre as disponibilidades futuras, no caso da água há poucas dúvidas quanto à situação cada vez mais dramática que enfrentamos. As reservas de água do planeta são constituídas por 98% de água salgada e 2% de água doce. Destes 2%, 87% estão bloqueados nas calotas polares e geleiras, e a maior parte do que resta se encontra em águas subterrâneas, na atmosfera e nos organismos vivos. As reservas de água útil são portanto relativamente limitadas, e em muitas regiões do mundo se tornaram escassas.

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Quanto ao consumo, a maior parte vai para a agricultura, que consome 70% da água, o restante dividido entre a indústria o uso doméstico, com grandes variações entre regiões e países. O problema essencial é que a água que utilizamos recolhe os defensivos químicos da agricultura moderna, os resíduos industriais e os esgotos domésticos, e se mistura às reservas existentes, gerando um efeito multiplicador de poluição de uma massa de água incomparavelmente superior ao volume de consumo[2]. Para se ter uma ideia, o ser humano produz diariamente nas cidades do mundo mais de 2 milhões de toneladas de excrementos, dos quais joga 98% nos rios, sem tratamento. Se acrescentarmos o gigantesco desperdício de água potável causado por uso irresponsável ou por instalações deficientes, temos de constatar que esta área, das mais vitais para o futuro da humanidade, não se dispõe de instrumentos institucionais minimamente compatíveis para a sua gestão.

O resultado prático é que hoje nos países em desenvolvimento a água poluída é responsável por 80% das doenças e 33% das mortes. Cerca de 15% das crianças nascidas nesta região morrem antes de 5 anos de diarreia causada pela ingestão de água poluída. Cerca de 1,2  bilhões de pessoas sofrem de doenças causadas pela água poluída ou transmitidas por saneamento inadequado.[3] Na América Latina, quase 30% da população vive sem acesso a fontes seguras de água, problema agravado pela urbanização relativamente mais avançada.

O exemplo de São Paulo é neste sentido característico. Helena Sobral constata que “a cidade tem-se utilizado de mananciais de áreas distantes até 100 quilómetros, apesar de o rio Tietê possuir na área vazão média natural de 80m3/s.” Ou seja, mantém-se o sistema de poluição local, doméstico como industrial, e vai-se buscar água  a grandes distâncias. Isso por sua vez gera maiores custos e aumento de perdas: “Segundo a Sabesp, há perda de 40% da água produzida e tratada, ou seja, o equivalente a 20 mil litros por segundo. Isso significa que, por exemplo, o sistema Alto Tietê produz apenas para compensar as perdas.” Um dos resultados imediatos é o rodízio, com cortes de água escalonada em diversos bairros. No caso dos cortes de água, a pressão para vazamento que existia nos tubos cheios tende a transformar-se em sucção, puxando para dentro dos tubos sujeira que será distribuída aos usuários no momento de reinício do abastecimento. Além disso, as pessoas passam a estocar água das mais diversas maneiras, gerando novas formas de contaminação e desperdício.

 

Na área do saneamento, a imagem não é mais brilhante. “A insuficiência  dos controles de emissão ou da infraestrutura, para tratamento minimamente adequado desses efluentes, tem comprometido a qualidade das águas para qualquer finalidade. A maior parcela de carga orgânica deve-se aos esgotos domésticos e a um número reduzido de indústrias altamente poluidoras, localizadas nas principais zonas industriais de São Paulo, Guarulhos, Osasco e ABC. A carga orgânica doméstica, que polui a bacia da região metropolitana, é de cerca de 508 lt-DBO/dia. A rede de esgoto atende a 67% das moradias de São Paulo. Parte desses esgotos coletados são despejados  diretamente nos córregos mais próximos. Outra parte está ligada a uma rede de coletores-tronco e é transportada para os grandes rios Tietê e Pinheiros. Apenas 18% dos esgotos coletados são interceptados e tratados. Tal fato se deve a impasses técnicos, políticos e econômicos na política de saneamento de São Paulo.” [4]

Na área do escoamento das águas pluviais e do tratamento das bacias em geral, encontramos problemas semelhantes. São Paulo tem uma mancha urbana da ordem de 30 por 50 quilómetros, ou seja, 1.500 km2. Destes, cerca de 950 km2 foram impermeabilizados com cimento ou asfalto. Para se ter uma ideia do problema, uma chuva de 50mm representa 75 milhões de metros cúbicos de água buscando saída na “bacia” assim formada. Na ausência de políticas planejadas, as respostas se dão segundo as pressões pontuais de populações desesperadas com inundações. A resposta será a canalização de um trecho de córrego, para responder à demanda de um bairro e aos interesses das empreiteiras, o que evidentemente acelerará a chegada da água para o bairro seguinte. O acúmulo deste tipo de soluções transformou São Paulo num conjunto de “tobogãs” em que a água chega com grande rapidez às partes mais baixas, e hoje mesmo uma chuva média paralisa a cidade. O gigantesco funil que se forma deságua no Tietê, onde a capacidade de escoamento se vê naturalmente ultrapassada, o que por sua vez resulta em novos contratos com empresas de desassoreamento.

As alternativas são conhecidas: em vez de simples canalizações que aceleram o fluxo da água, precisamos proteger as várzeas, recuperar a permeabilidade do solo, rearborizar encostas  e melhorar a retenção de água nas áreas intermediárias. O problema central reside por tanto, uma vez  mais, na geração de instituições e mecanismos de decisão que permitam voltar a um mínimo de racionalidade nas políticas.

Tem muito sentido incluir neste setor de atividades econômicas as redes de recolha, transporte e destino final do lixo. Uma cidade como São Paulo hoje produz 12 mil toneladas de lixo doméstico por dia. Na falta de soluções alternativas em escala significativa, opta-se pelo “lixão”, chamado pudicamente de “aterro sanitário”. O lixão de Santo Amaro tem hoje mais de 35 milhões de toneladas acumuladas de lixo, com efeitos da filtração de chorume para os lençóis freáticos subterrâneos que só podemos imaginar. A poluição gerada por resíduos industriais, frequentemente de alta toxicidade como no caso dos resíduos espalhados nos mananciais da baixada santista pela Union Carbide ou pela Rhodia, poderá ter efeitos desastrosos no longo prazo. A poluição do solo em geral também termina por afetar a água, e gera-se de certa maneira um sistema integrado de degradação ambiental. Naturalmente, sempre se encontrarão técnicos ou políticos para minimizar os perigos. Como no caso da roleta russa, realmente as chances de um desastre não são tão graves, pois há no revólver apenas uma bala.

O desmando nesta área não é propriamente brasileiro. Apesar dos avanços realizados durante a “Década da Água” dos anos 1980, a visão geral apresentada pela ONU é de que “a não ser que os governos e as agências internacionais mudem substancialmente o seu enfoque e engajamento, a população sem acesso a água segura ou a saneamento adequado irá crescer rapidamente durante os anos 1990.”[5] E Wally N’Dow, Secretário-geral da Conferência de Istanbul em 1996, não tinha dúvida em afirmar que a água estava se tornando um dos problemas mais urgentes e mais dramáticos da humanidade.

Independentemente do imenso sofrimento que representa o não-acesso a fontes seguras de água, o custo de se assegurar água limpa para todos é incomparavelmente menor do que os custos adicionais de saúde, sem falar da imensa perda de capacidade de trabalho e do impacto sobre a produtividade social. Em outros termos, a forma de se gerir o problema da água constitui um contra senso econômico. Além disso, não se contabiliza o gigantesco prejuízo real causado à sociedade pelo fato de se liquidar  bens públicos, como o acesso livre e gratuito a um rio ou lago limpos, prazeres simples mas que continuam essenciais, e cujo custo encontraremos mais adiante nos preços dos clubes privados, nos dramas das clínicas de saúde, nos gastos com a criminalidade.

A ideia imediatamente levantada em certos setores econômicos é, naturalmente, a da privatização. A verdade é que, na ausência de uma política efetiva para o setor, e à medida que a qualidade da água vai se deteriorando, as populações vêm-se obrigadas a comprar água de fornecedores privados, que atendem hoje algo como 20% da população urbana do terceiro mundo. O relatório da ONU citado acima indica que a relação entre preços da água fornecida por sistemas públicos e fornecedores privados é de 1 para 10 em Istanbul,  1 para 17 em Lima, chegando a 1 para 83 em Karachi, para dar alguns exemplos.[6]

Em termos econômicos, enquanto um produtor de camisas que vende caro demais será substituído no mercado por produtores menos gananciosos ou mais produtivos, inclusive de outros países, no caso da água limpa trata-se de um bem escasso, que pertence a um espaço econômico local, e cuja demanda é muito inelástica: as pessoas pagarão qualquer preço por um bem que é vital. Aqui, em termos rigorosos, a escassez torna-se uma formidável fonte de lucros potenciais, e é natural que o controle do setor seja visto com cada vez mais interesse pelos interesses privados.

No caso brasileiro, o setor terminou sendo controlado por uma associação firmemente estruturada de empreiteiras, de companhias estaduais de água e saneamento, de empresas de loteamento e de políticos corruptos, o que implica que tampouco deve-se ter ilusões sobre as orientações que presidirão à manutenção do sistema público existente. Esta articulação perversa de interesses permite às empreiteiras sobrefaturar de maneira escandalosa as obras, o que reduz drasticamente o volume de infraestruturas disponíveis, além de privilegiar obras faraônicas de pouco sentido econômico; as companhias estaduais passam a serem essencialmente vendedoras de água, desleixando o saneamento, na medida em que vender água constitui hoje uma grande indústria e permite financiar tanto o sobrefaturamento das empreiteiras como a reeleição dos políticos corruptos; e no espaço cada vez mais valorizado das cidades, comprar antes os terrenos que serão dotados de infraestruturas constitui uma tradição dos grupos ligados à especulação imobiliária. Como os políticos eleitos pelo setor permitem manter a legislação existente, ou inclusive alterá-la no sentido de uma privatização ainda maior, os nós do sistema ficam bem amarrados.

Há uma série de fatores que dificultam a regulação do setor. Primeiro, trata-se de um setor extremamente capilar, no sentido de dever chegar a cada residência, cada empresa, cada comércio, cada unidade agrícola. Segundo, trata-se de um setor que funciona como sistema, onde a água usada de um usuário pode se tornar a fonte de poluição para outro, onde a poluição do solo pode destruir as reservas de água de toda uma região, onde uma urbanização mal planejada pode destruir áreas de mananciais e a sobrevivência de outras regiões. Em terceiro lugar, trata-se de interesses difusos, onde a disponibilidade da água é vista como algo óbvio e natural, e onde as pessoas têm dificuldades de entender como uma ação simples como a de jogar um objeto na rua ou no córrego, multiplicada por milhões de habitantes, torna-se um drama social e econômico. Finalmente, é preciso salientar a que ponto o caráter recente da urbanização pesa na cultura do setor, já que as pessoas ainda não assimilaram o fato que água tratada entregue no domicílio ou na empresa é um produto caro e escasso, e não têm consciência da dimensão sistêmica da problemática ambiental urbana.

Pelos desafios que apresenta, a problemática da água pode se tornar assim um exemplo das formas mais modernas de gestão sistêmica de que temos necessidade para um desenvolvimento minimamente sustentável no longo prazo. Alguns pontos-chave a se levar em consideração poderiam aqui ser os seguintes:

 

 

 

 

 

O setor de água e saneamento, no sentido amplo que aqui lhe damos, não padece da falta de conhecimentos técnicos ou de engenheiros, e o seu problema sequer é de financiamento. É a dinâmica de regulação do setor que é completamente inadequada, frente às relações técnicas que o caracterizam e às relações sociais e ambientais de uma sociedade moderna. O eixo de transformações necessárias não se circunscreve nem na estatização nem na privatização. Trata-se, antes de tudo, da democratização dos processos de decisão. Aqui, como em outros setores, a ausência desta democratização está acarretando gigantescos custos econômicos e sociais para a sociedade.


Notas

[1] – A reflexão sobre a água faz parte de um conjunto de estudos sobre infraestruturas em L. Dowbor, A Reprodução Social, Ed. Vozes 2003,  disponível em https://dowbor.org/01repsoc2.doc

[2]  – A quantificação aqui é simples. Segundo o cálculo do professor Samuel Murgel Branco, no caso de um esgoto médio, a demanda bioquímica de oxigênio  é dar ordem de 300mg/l, enquanto a DBO de lagos e rios deve ficar inferior 3 mg/l, o que significa “que para cada litro de água consumido, serão necessários 100 outros litros de água para diluição.” Os efluentes industriais contêm mais de 3.000mg/l de DBO, afetando-se assim mil litros de água para cada litro utilizado.  Certos poluentes químicos causam evidentemente danos incomparavelmente maiores e muitas vezes irreversíveis. Ver Helena Ribeiro Sobral, O meio ambiente e a cidade de São Paulo, Makron, São Paulo 1996, p. 43

[3]  – O conjunto dos dados acima provém do balanço realizado pelo Conselho Econômico e Social da ONU para o Dia Mundial de 1996, Habitat II, World Water Day Issue, February 1996, nº 6, p. 4

[4]  – Helena R. Sobral, op. cit. p. 44

[5]  – UNCHS – An Urbanizing World: Global Report on Human Setlements 1996 – Oxford University Press 1966, p. 264

[6] – UNCHS – An urbanizing worldop. cit. p. 264

[7]  – IBAM, Consulta nacional sobre a gestão do saneamento e do meio ambiente urbano, Relatório Final, IBAM, Rio de Janeiro, 1995; ver em particular o Relatório Executivo e o excelente estudo de Liszt Vieira, Relatório sobre a gestão ambiental urbana, no mesmo documento.


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