A crise financeira tem jeito? – 1998, 36p.
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A crise financeira tem jeito? – 1998, 36p.

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
36 páginas
Originalmente publicado
Data

Um pequeno balanço e apresentação do pano de funda da crise financeira que hoje assola o Brasil. O artigo se apoia em publicações recentes da Unctad, e análises de Le Monde Diplomatique. O artigo, inicialmente intitulado A crise financeira tem jeito? foi publicado pela revista PUC Viva, da Puc de São Paulo, Ano 1, nº 3, Dezembro de 1998, página 31 a 36 [email protected] (L. Dowbor)

 

 

A CRISE FINANCEIRA TEM JEITO?

 

“É esta associação de aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação”- Unctad (1)

 

 

      “As nossas recomendações eram boas, mas foram mal aplicadas”

 

    Michel Camdessus, FMI (2)

Ladislau Dowbor
Outubro 1998

O prêmio nobel de 1998 não foi para especialistas em mecanismos econômicos de curto prazo e especuladores financeiros, mas para Amartya Sen, um especialista em problemas dramáticos do subdesenvolvimento como a fome. A reviravolta é significativa, pois mostra o fim da grande festa liberal de comemoração da derrota do modelo soviético, e a volta aos problemas estruturais que o capitalismo realmente existente enfrenta neste fim de milênio.

Somente os mal-informados acharam que tinhal algo a comemorar. Nunca as pessoas estiveram tão inseguras como hoje frente ao nosso futuro comum. E um mínimo de realismo nos leva à consideração seguinte: como foi possível que, enquanto a bolha especulativa mundial funcionava, achássemos a miséria no mundo uma coisa normal, um defeito temporário de um sistema no conjunto positivo?

Foi preciso a bolha estourar para despertarmos? O que é uma economia que não responde às nossas necessidades essenciais? É significativo Ignacio Ramonet escrever, na primeira página do Le Monde Diplomatique: “O que fazer frente à crise atual? Em primeiro lugar, desarmar, em escala internacional, os mercados financeiros. A amplitude da crise atual deve abrir os olhos de todos os que acreditaram que a pilotagem da economia mundial deveria ser abandonada tão somente ao mercado”.(3)

Já incorporamos esta mentalidade de que a economia é um jogo de sinuca, e não a organização sistêmica de atividades socialmente úteis. De tudo se fala, do cassino global, da bola da vez, do colchão de reservas. Embalados no jargão da moda, acabamos esquecendo o que deveria ser afinal a principal função da intermediação financeira, a de agregar poupanças individuais para permitir investimento produtivo, gerando bens, serviços, emprego e renda.

O essencial, para nós, é que o ciclo de reprodução social exige não só a produção, mas também a distribuição para que haja consumidores, e os empregos para que haja massa salarial e um mínimo de estabilidade social e política. Isto por sua vez implica o financiamento dos produtores, viabilizando os investimentos e as transformações estruturais de médio e longo prazo, a chamada construção da economia.

O pano de fundo da problemática que discutimos, portanto, é o fato de termos um sistema capitalista que representa um bom instrumento de organização da produção, mas não sabe distribuir, organiza muito precariamente a absorção produtiva dos recursos humanos, e desvia para atividades especulativas a já precária poupança da população.

Estas tres grandesdeficiências do sistema liberal, nos planos da distribuição, do emprego e da alocação de recursos, viram-se dramaticamente agravadas nos últimos anos.

No plano da distribuição, o liberalismo havia gerado, com Keynes, um subsistema social-democrata. Frente aos dramas do desemprego e subconsumo dos anos 30, Keynes mostrou que frentes de trabalho e apoio financeiro aos desempregados, gerando uma massa salarial e maior capacidade de compra, dinamizariam o mercado, provocando uma recuperação da conjuntura capitalista via demanda. Em outros termos, Keynes demostrou aos ricos que a miséria é ruim para os ricos, e não apenas para os pobres. A social-democracia não apelava, em termos econômicos, para a generosidade do capitalista, e sim para a dimensão macroeconômica dos seus interesses objetivos. Boa parte do sucesso da sua filantropia teórica deve-se seguramente a este fato.

No entanto, o sistema proposto supunha uma forte capacidade de Estado, que cobraria impostos das empresas para financiar a redistribuição e a dinamização econômica. Hoje, com a globalização, qualquer reforço de impostos leva as empresas a emigrar para regiões onde se produz mais barato. Em outros termos, a economia se globalizou, enquanto os instrumentos de política econômica, essenciais para uma política keynesiana, continuam sendo nacionais, e portanto de efetividade cada vez mais limitada. Como não há governo mundial, que possa retomar o mecanismo já no nível planetário, regrediram as políticas de redistribuição, e voltamos a um capitalismo selvagem próximo do antigo liberalismo: o neo-liberalismo. No longo prazo, o prmeiro a morrer foi o próprio Keynes.

No plano do emprego, as transformações recentes são igualmente profundas, na medida em que a revolução tecnológica gera uma redução absoluta do nível de emprego. Estima-se hoje que, na média, um crescimento de 5% ao ano seria necessário para manter o emprego no nível existente. O crescimento mundial, no entanto, se reduziu de cerca de 4% ao ano nos anos 70, para cerca de 3% nos anos 80, e 2% nos anos 90, segundo o relatório da Unctad 1997. A simultanea redução do ritmo do crescimento econômico e da capacidade de geração de emprego das unidades produtivas leva a uma situação dramática que envolve bilhões de pessoas no planeta.

Fator insuficientemente mencionado, a dramática urbanização dos últimos anos tirou as populações dos campo, onde sempre há um mínimo de alternativas de atividade, e as jogou nas periferias das cidades. Assim, os especuladores fundiários, ao acumularem terras improdutivas, contribuem diretamente para os dramas do desemprego. Hoje o Brasil cultiva cerca de 60 milhões de hectares dos 370 milhões de solo agrícola disponível, enquanto 80% da população do país se concentra nas cidades, onde a base de emprego não só não se expande, como se contrái.

Em termos de alocação de recursos, as tendências recentes, com a globalização financeira, tornaram a situação particularmente dramática, na medida em que tiram recursos da área dos investimentos produtivos e os transferem para a especulação financeira. Esta tendência atinge diretamente o coração da legitimidade do sistema capitalista. De forma mais ou menos explícita, todos nós nos queixamos das injustiças geradas pelo capitalismo, mas de certa forma as aceitamos na medida em que a riqueza do capitalista tendia a se transformar em investimento produtivo, empregos e produto. A injustiça social passava assim a ser o mal inevitável de um processo em última instância positivo. O que é novo, é que com a expansão dos sistemas de especulação financeira, segundo a Unctad, “a crescente concentração da renda nacional nas mãos de poucos não tem sido acompanhada por uma elevação de investimentos e crescimento mais rápido. Nos países do Norte, os lucros estão em níveis nunca vistos desde 1960, mas de forma geral eles agora geram muito menos investimento e emprego do que anteriormente”.

Em consequência, o principal desafio seria como “transformar os lucros crescentes em investimento num ritmo suficiente para sustentar um contrato social pelo qual desigualdades iniciais poderiam se ver justificadas, e com o tempo reduzidas, pelo aumento de renda e de nível de vida da massa população que resultaria”.(4) Nesta lógica, que constitui já não uma exceção mas uma tendência regular das últimas décadas, consistindo em lucros crescentes de um lado, e investimentos, salários e emprego decrescentes do outro, o sistema simplesmente não se sustenta. “O que está em jogo, escreve Martin Wolf no Financial Times, é a legitimidade da economia capitalista mundial”.(5) O Financial Times…

O nosso problema aqui não é simplesmente atacar ou defender o sistema. O que realmente nos interessa, é entender porque o liberalismo, ou a versão atualizada neoliberal, não conseguem mudar os rumos. Não podemos esquecer que foi o trágico desprezo do capitalismo pela miséria, desemprego e exclusão social que criaram as bases para a proposta da expropriação generalizada dos capitalistas, e para os regimes comunistas. E os excessos do comunismo não nos devem deixar esquecer os excessos do capitalismo que lhe deram lugar, e que hoje voltam com a força toda.

Um elemento interessante e que não temos levado suficientemente em conta, é a redução do espaço dos mecanismos de mercado. Não há dúvida que com a luta pela sobrevivência econômica mundial que hoje vivemos, a competição se tornou feroz. Mas uma exacerbação da competição não significa que se trata de mecanismos de concorrência de mercado. Hoje 35% do comércio mundial se dá entre filiais e matrizes das mesmas empresas, segundo preços acertados de forma administrativa, onde o mercado tem muito pouco a ver. Os espaços econômicos globalizados são controlados por grupos muito reduzidos. No caso dos Estados Unidos, de longe a maior potência na área da economia global, as 25 maiores empresas controlam 51% da totalidade dos investimentos externos diretos do país. Se contarmos as 100 maiores, o nível de controle sobe para 88%.(6) Entre os jumbos da economia global, o que prevalece não é a concorrência de mercado, são os acertos interempresariais (interfirm agreements), que segundo a Unctad atingiram 4600 em 1995, triplicando em poucos anos.

Não há nada de muito misterioso nisto. Herman Daly resumiu o problema de forma simples ao dizer que “competition is self-eliminating”: “A competição é o que mantém os lucros em nível normal, e os recursos alocados de forma apropriada. Mas a competição envolve ganhar e perder, e ambos têm a tendência a serem cumulativos. Os ganhadores do ano passado encontrarão maior facilidade para serem os ganhadores deste ano. Os ganhadores tendem a crescer, e os perdedores a desaparecer. Com o tempo muitas firmas se tornam poucas firmas, a competição sofre erosão, e o poder de monopólio aumenta.”(7)

O que é realmente este novo capitalismo de mega-empresas onde o mecanismo de mercado é cada vez mais anêmico? E o que há de mercado na fortuna pessoal de 60 bilhões de dólares de Bill Gates? Não há nenhuma opção de mercado da minha parte quando utilizo o microsoft-word, pois sou forçado a utilizar o programa que os outros usam, o programa dominante, sob pena de não me comunicar. Os dólares iniciais de Bill Gates resultaram sem dúvida de criatividade e iniciativa, inclusive a de se lançar contra o gigante IBM, mas os 60 bilhões hoje se renovam através de uma cobrança de pedágio que tem origem na sua posição dominante, e não em novas contribuições produtivas.

A posição dominante hoje se constrói, no caso das mega-empresas mundiais, através de impressionantes esforços de alavancagem financeira, da articulação de apoios de políticos, de recurso a grandes empresas de serviços jurídicos — é a guerra júridica com a Apple que permitiu a Gates copiar o que hoje é o Windows, e não a concorrência de mercado — , e de gigantescas campanhas de mídia.

É importante rever hoje, na linha destes novos mecanismos, o que há por trás desta impressionante simplificação da realidade que é o conceito de “forças do mercado”. Esta expressão nos dá a impressão de que haveria um mecanismo impessoal e objetivo, uma lei a que todos estariam submetidos. Hoje as mega-empresas mundiais fazem a lei, as forças de mercado têm nome e endereço, e a mão se tornou perfeitamente visível.

O novo papel da mídia e da comunicação em geral é exemplar. O norteamericano médio lê provavelmente alguns poucos livros durante a sua vida, mas a avaliação é de que assiste a uma média de 150 mil mensagens publicitárias na televisão. Segundo o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1998, das Nações Unidas, “as estimativas mais conservadoras situam o investimento global em publicidade na casa de 435 bilhões de dólares”.(8) Este bombardeamento ideológico, naturalmente, pouco tem a ver com informação útil sobre os produtos: trata-se de gerar a presença mental da marca, de criar atitudes consumistas e de assegurar a formação de uma cultura centrada na aceitação passiva do mundo tal como é, organizado por forças externas que não dependem de nós, como realidade natural. Trata-se de um mundo que não só domina, mas domina os instrumentos de informação que sobre ele temos. E aproveita este domínio para nos informar que não está nos manipulando, porque nós, o cliente, somos o rei. Com o mesmo argumento, há pouco tempo, se colocava a mulher no fogão e no tanque, para ser a rainha.

Até um tempo atrás, considerávamos os meios de comunicação como passivos em termos de mecanismos econômicos: refletiam a realidade, ou sobre ela circulavam informação. Hoje os instrumentos de dominação cultural se tornaram centrais na própria reprodução do modelo econômico. Quando compramos um Cebion por 8 reais, pagando pela caixinha, pelas borbulhas coloridas e pela imagem dezenas de vezes a mais do que custam os miligramas de ácido ascórbico (vitamina C) que o produto contém, houve uma inversão profunda de todo o sistema. É a imagem que pagamos, ou, como estas empresas o definem, pagamos os “intangíveis”. A Nike, explicando como um tênis cuja produção física custou menos de 10 dólares é vendido a 100 dólares, responde candidamente: nós não vendemos tênis, vendemos emoções.(9) O principal elemento gerador de lucro já não é o produto, mas o feito de dominação cultural conseguido junto ao consumidor.

Quanto vale uma empresa que não tem instalações significativas, nem fábricas, nem estoques, mas formou na cabeça das pessoas o sentimento de que terão a altura e a potência de um Michael Jordan se calçarem o mesmo tênis? A empresa vale, nos dizem cada vez mais, o que as pessoas acham que vale. E vendem-se ações no valor correspondente. Formam-se assim fortunas em ações baseadas sobre valores imaginários. A posse de ações, por sua vez, nos confere um status de rico, de bem sucedido. As pessoas compram ações, que se valorizam. Enquanto vai entrando dinheiro novo de novos poupadores, o estoque de recursos aplicados aumenta, permitindo remuneração, o que aumenta as cotações e o volume global do que chamamos curiosamente de papéis, que as pessoas vão acumulando como se fossem efetivamente riqueza.

Até onde pode ir este processo de levitação? Vimos mais acima que enquanto as trocas reais de bens e serviços estão situadas na faixa de 25 bilhões de dólares por dia, as trocas especulativas atingem 1,5 trilhões, 60 vezes mais. A tecnologia transformou os papéis em sinais magnéticos, que se deslocam na velocidade da luz, e podem ser aplicados instantaneamente em qualquer praça financeira do planeta. Em outros termos, quando os valores eram representados por ouro, havia limites na relação entre a produção e a sua representação financeira, pois havia limites físicos de disponibilidade de ouro. Quando passamos para o dólar lastreado em dólar, havia o lastro das disponibilidades de Fort Knox. Com a desvinculação do dólar relativamente ao seu lastro, em 1971, ficou apenas o papel, e a confiança que o público quisesse nele depositar. Hoje, nem o papel é necessário, e uma pessoa é rica pelos sinais magnéticos inscritos em diversas máquinas no planeta.

Até há um certo tempo atrás, podíamos dizer que estes sinais magnéticos tinham o lastro de um produto: o americano que tem dinheiro na conta sabe que há uma contrapartida em produto, o Pib americano, que este dinheiro poderá comprar. As grandes empresas de especulação financeira, os chamados investidores institucionais, no entanto, acharam ridículo limitar o volume de papéis à sua base em produtos. Porque não deixar um grande comerciante de café da Tanzânia, por exemplo, vender o café que irá comprar no ano seguinte, na próxima safra, desde já, com um pequeno deságio? Passa-se assim a comercializar o que sequer ainda produzimos, e frequentemente o que sequer ainda foi plantado. Literalmente, passamos a trocar papéis sobre bens que imaginamos que existirão no futuro, gerando a imensa gama dos chamados derivativos. Nas reuniões do Senado americano, em setembro de 1998, com Alan Greenspan e Robert Rubin, respectivamente chefe do banco central norte-americano e diretor do tesouro, a cifra estimada de recursos aplicados só nos derivativos era de 30 trilhões de dólares, mais do que a totalidade do Pib mundial.

Evidentemente, não há limite, pois enquanto as pessoas estiverem dispostas a acreditar que a produção continuará a se expandir, e a confiar em papéis que representam uma riqueza que ainda não produzimos, o sistema se mantém. A imagem que podemos utilizar é a seguinte: se numa sala de conferências uma pessoa vende, por cinquenta centávos cada, vales para tomar um cafézinho, podemos estimar que nem todos irão imediatamente trocar o seu vale por um café. Vendo isto, o vendedor começa a emitir mais vales do que o café disponível na casa, esperando que no futuro haverá mais café. Seguramente, o sistema pode funcionar. E se as pessoas acharem que vale a pena estocar no bolso dezenas de vales para cafèzinho, para uso futuro, o vendedor poderá passar a imprimir grandes volumes de vales, despreocupando-se, já que está na alta finança, do ridículo cafèzinho. O problema é que se alguns começarem a se interessar em tomar concretamente o café, e descobrirem que há muito mais vales do que café disponível, haverá uma corrida para ver quem consegue trocar o seu vale pelo produto concreto antes que o valor do vale despenque. Nas bolsa, quando o valor do vale despenca mais de 10%, suspende-se temporariamente o cafezinho.

No vale está escrito “vale um café”. O vendedor sabe que quanto mais aumenta a diferença entre o número de cafés disponíveis e o número de vales emitidos, mais a operação se torna arriscada. No entanto, como vê que há outros vendedores de vales que continuam vendendo, e que o público ainda não esticou a sua credulidade até o limite máximo, oferecerá mais papéis, pois de qualquer maneira o mercado se expandirá independentemente dele. E se expande porque não há limites, não há mecanismo regulador.

Enquanto o mecanismo era nacional, havia autoridades monetárias, um banco central, instituições interessadas na estabilidade do sisistema. Havia limites. Hoje, o sistema é mundial, mas os instrumentos reguladores continuam sendo nacionais. O resultado prático é que não há limites. Não há governo mundial, não há autoridade monetária mundial. Quando James Tobin, prêmio Nobel de economia, propós que as transações especulativas internacionais pagassem um imposto, a idéia foi considerada muito interessante e louvável por todos os governos, mas ninguém se interessou pela sua aplicação. Não há autoridade mundial. Os grandes especuladores encontraram um fenomenal espaço onde podem brincar com as poupanças concretas das populações. No exemplo do cafèzinho visto acima, ainda podemos imaginar um cliente irado agarrando o vendedor pelo colarinho, mostrando o vale, e exigindo o seu café. No caso do mercado financeiro mundial, um jovem especialista em finanças lhe explicará pacientemente que a cotação do seu vale mudou, e portanto não vale mais um cafézinho, devido à grave situação na Rússia, ou à teimosia do banco central norteamericano de não baixar a taxa de juros e assim por diante.

O fato das finanças funcionarem no espaço global, enquanto os governos ainda estão limitados aos espaços nacionais, gera assim uma imensa área de perda de governabilidade econômica em geral.

Quando os mercados financeiros funcionavam, os investidores eram milhões de pequenos poupadores que estudavam com cuidado os balanços, e premiavam com as suas poupanças as empresas mais bem geridas. Hoje, trata-se de mega-investidores institucionais, que podem ser fundos de pensões, equipados com os computadores e softwares mais avançados, que aplicam modelos matemáticos complexos, buscando minimizar os riscos e maximizar os ganhos. Os volumes movimentados por estes especuladores são gigantescos, e podem provocar corridas pontuais mortais para determinados países. Na prática, se alguns grandes especuladores decidirem retirar bruscamente as suas aplicações de um determinado mercado, não há reservas que resistam. Compare-se os magros 50 bilhões de dólares de reservas de um grande país como o Brasil (outubro 1998), com os fluxos especulativos internacionais de 1,5 trilhões de dólares por dia.

Como ficam as alternativas brasileira frente a isto? São desoladamente simples. Se baixar a taxa de juros, os capitais externos, como diz o Josias, fazem beicinho e vão embora, gerando uma quebra financeira, levando o nosso precisos colchãozinho. O que vai embora, é preciso dizê-lo, é o dinheiro, porque as pessoas que aplicam este dinheiro e o levam para fora representam, em grande parte, especuladores bem brasileiros.

A manutenção dos juros altos, por sua vez, obriga o governo a desviar para o pagamento de juros o que poderia estar investindo no desenvolvimento social e econômico do país. Com isto reduz-se a atividade econômica no país, o que por sua vez reduz a base tributária, o que aumenta o déficit, o que aumenta a dívida sobre a qual se calcula o juro. Emir Sader resume bem a situação: “Fixando assim taxas de juros que permitem atrair o capital externo, o governo fixou igualmente taxas mortíferas das quais será a vítma no momento de reembolsar as suas próprias dívidas. Tal é a engrenagem perversa na qual, em nome da estabilidade monetária, o governo Cardoso se trancou a si mesmo”.(10)

O setor privado é diretamente afetado. Aliás, não deveria ser mais chamado de setor privado, conceito hoje demasiado abrangente. É profundamente diferente, em termos dos seus interesses econômicos, o especulador financeiro que tem tudo a ganhar com a ciranda, e o produtor, que precisa de juros baixos para poder investir e enfrentar a concorrência.

O produtor brasileiro viu nesta década a drástica redução de tarifas aduaneiras, formando a chamada abertura econômica. Simultâneamente, visando assegurar a âncora cambial do real, manteve-se uma sobrevalorização impressionante da moeda, o que significa que quem importa paga o dólar barato, o que torna mais difícil ainda o produtor enfrentar a concorrência internacional. Com esta dupla abertura, o produtor poderia até se ver estimulado a se renovar em termos de gestão e de tecnologia, e eventualmente se defender, ou até se reconverter de maneira produtiva. Mas o financiamento da reconversão se torna proibitivo com esta taxa de juros. O empresário produtivo fica observando, e se sente cada vez mais desorientado: se a direita está no poder, se estamos fazendo tudo de acordo com os dogmas, se cumprimos todas as exigências internacionais, como é que as coisas não andam? Já não basta votar à direita? O setor produtivo, não o do pedágio econômico, está gradualmente entendendo que a festa está se dando às suas custas também. (11)

A recessão no setor produtivo privado significa menos capacidade de pagar impostos, o que aumenta o déficit público, o que por sua vez agrava o endividamento e assim por diante. Em outros termos, se baixar a taxa de juros, o bicho pega; se ficar no nível que está, o bicho come. Pessimismo? Trata-se, antes disso, de uma perda geral de governabilidade econômica. Aceitamos a globalização como positiva, com a visão de abertura de mercados, de ampliação do comércio. O que tivemos, foi uma explosão das atividades especulativas, e o desvio das atividades financeiras para o espaço mundial, sem que exista governo mundial.

As alternativas, o caminho a seguir, não oferecem mistérios: trata-se de voltar a economia para dentro, priorizar os setores produtivos, redistribuir a renda, aumentar o mercado interno. Mas se trata de alternativas que passam por outro pacto político, com menos sorriso de banqueiro e de ACM, descentralização da gestão para permitir a sólida organização de estruturas participativas, setor por setor da economia, além da dinamização de uma reforma agrária de verdade, abertura linhas privilegiadas de crédito produtivo e assim por diante.

Não é falta de visão das alternativas que bloqueia o caminho. É a própria articulação perversa entre as opções políticas e as opções econômicas dos grupos que dirigem o país. Não se pode ter a pior distribuição de renda no planeta, e esperar que o povo se sinta solidariamente envolvido nas opções do governo. A fragilidade política interna do governo — no sentido amplo, envolvendo tanto os governantes como os mega-grupos econômicos articulados dentro e em torno do Estado — faz com que sejam profundamente vulneráveis a qualquer olhar irritado dos países dominantes. E com isto, a margem de manobra se torna demasiado estreita para qualquer mudança.

Na ausência de outra lógica, buscamos aumentar o colchão, talvez com algumas dezenas de bilhões de dólares de dívida a mais, com a ajuda concertada do FMI, do Banco Mundial e do governo norte-americano. É uma visão de curto prazo. Em vez de consertar o telhado, compra-se mais bacias para as goteiras.

Mais do que tecnicalidades econômicas, o indispensável hoje, é uma mudança de cultura política, uma compreensão de que os sindicatos, as organizações populares, os embriões de organizações empresariais progressistas, os amplos setores de pequena e média empresa que nunca lucraram com intermediações ou com privilégios políticos, bem como os políticos efetivamente dispostos a batalhar o bem comum e o futuro do pais, poderiam constituir a base política de um governo capaz, com respaldo interno, de renegociar as relações externas. Muitos dos que se chocam com o radicalismo, por exemplo de um MST, se esquecem que reivindicações populares justas se radicalizam quando encontram portas fechadas.

Se olharmos o pacto político de qualquer país razoavelmente ordenado, digamos um Canada, qualquer trabalhador, com ou sem terra, é consultado para qualquer decisão política ou econômica significativa. Os países escandinavos evoluiram para o que hoje se chama de “negotiated economy“, economia negociada, onde todos os atores sociais são consultados, e a mídia informa, não manipula. O Terceiro Setor, ou non-profit sector como é chamado nos Estados Unidos, emprega neste país 15 milhões de pessoas, e gera 700 bilhões de dólares por ano, o equivalente a um Pib brasileiro. As próprias empresas descobrem, pelo mundo afora, que trabalhador pensa, pode assumir responsabilidades, organizar-se em equipes, gerar qualidade sem esperar ordens. Aqui as ONG’s são vistas ainda como curiosidade, os sindicatos com desconfiança, e a capa de uma revista de peso nacional apresenta um dirigente rural com um olhar satânico, o rosto pintado de vermelho.

Por trás da crise econômica, encontramos, sólido como um rochedo, o nosso eterno atrazo político, a profunda convicção de que o povo é perigoso, e de que a política deve permanecer sólidamente centralizada nas mãos desta mega-estrutura do poder constituida pelas grandes empresas e seus associados políticos. Mega-estrutura, aliás, que se prepara rapidamente para transferir para as nossas costas os custos do sistema especulativo ao qual se atrelaram.

Notas
  • Rubens Ricupero – Trade and Development Report 1997, Overview p.11.- Unctad, New York, Geneva, 1997 : “It is this association of increased profits with stagnant investment, rising unemployment and reduced pay that is the real cause for concern”.
  • Le Monde Diplomatique, Octobre 1998, p. 19
  • Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique, Octobre 1998
  • Unctad, op. cit. p. 11
  • Martin Wolf, Países ricos terão de jogar com as cartas da mesa, artigo do Financial Times transcrito na Gazeta Mercantil de 21 de setembro de 1998, p. A-16
  • Unctad, World Investment Report 1997, New York, Geneva 1997, Overview p. 9
  • Herman E. Daly and John B. Cobb Jr., For the Common good: redirecting the economy toward community, the environment and a sustainable future – Beacon Press, Boston 1994, p. 49 –“Competition is what keeps profit at the normal level and resources properly allocated. But competition involves winning and losing, both of which have a tendency to be cumulative. Last year’s winners find it easier to be this year’s winners. Winners tend to grow and losers disappear. Over time many firms become few firms, competition is eroded, and monopoly power increases. To the extent that competition is self eliminating, we must constantly reestablish it by trustbusting”.
  • Human Development Report 1998 – Changing today’s consomption patterns for tomorrow’s human development – UNDP, New York 1998. Overview p. 8
  • Sobre este ponto, ver o excelente Quando as corporações regem o mundo, de David Korten, editado pela Futura/Siciliano em 1997
  • Emir Sader, Le pacte des élites brésiliennes, Le Monde Diplomatique, octobre 1998, p. 7; os dados básicos do círculo vicioso estão bem apresentados no trabalho do Dieese de setembro 1998, A Conjuntura Econômica Recente: Crise Financeira e Vulnerabilidade do Real.
  1. Declaração de Horácio Lafer Piva, diretor da Fiesp, em 14 de outubro de 1998: “A indústria de forma geral esta muito perplexa com o que anda acontecendo” – Seminário do Setor Plástico do Grande ABC, Diadema

Ladislau Dowbor, 59, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “A Reprodução Social”, editora Vozes 1998, e de numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social. Foi Secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo. Fone: (011) 3872-9877; FAX: (011) 3871-2911; E-mail [email protected] ; home pagehttps://www.dowbor.org/

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