Políticas municipais de emprego – 1996
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Políticas municipais de emprego – 1996

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
Originalmente publicado
Data

Artigo elaborado em conjunto com Silvio Cacciabava, do Pólis, mostrando como neste país que tem tanto trabalho por fazer, é absurdo ter desemprego: o problema é essencialmente de organização social, e pode ser enfrentado de forma prática no nível dos municípios, onde os principais atores sociais e econômicos se conhecem e podem ser articulados de maneira renovada. Publicado pela revista Pólis, n. 25, São Paulo 1996. E-mail: [email protected]. (L. Dowbor)

 

 

Políticas Municipais de Emprego

 

Ladislau Dowbor
Silvio Cacciabava
Maio 1996

 

 

O presente estudo visa discutir algumas propostas práticas relativas às políticas municipais de emprego. A problemática do emprego é determinada por dinâmicas complexas de nível nacional e mundial. Está diretamente relacionada com o processo de urbanização e as tranformações tecnológicas que varrem o planeta. No entanto, cada vez mais constata-se a que ponto os municípios podem inverter determinadas tendências negativas, apropriar-se de forma renovada das mesmas tecnologias, aproveitar as novas oportunidades que a urbanização oferece, articular as visões de empresários, sindicatos, organizações comunitárias, instituições científicas e organizações não governamentais na construção de novos caminhos.

Grande parte do drama que vivemos e do grande sentimento de impotência que nos invade provém de uma antiquada divisão do mundo em público e privado, onde o governo municipal se limita a tapar buracos e manter a cidade limpa, esperando que o setor privado faça o melhor possível para o resto. Hoje, com a emergência do “terceiro setor” público-comunitário, com os conceitos de parceria, com a gradual compreensão dos processos participativos e de restituição aos cidadãos do controle sobre os seus espaços de desenvolvimento, aparecem novos rumos que tendem a ultrapassar a absurda dicotomia entre burocracia com justiça social e liberdade econômica com tragedias sociais e ambientais.

Nas linhas que seguem caracterizaremos a formação do universo de desemprego no Brasil, para em seguida estudar a herarquização dos subsistemas de trabalho. Na terceira parte estudaremos algumas linhas básicas de ação no sentido da promoção local de emprego. Na quarta parte, nos debruçaremos sobre aspectos organizacionais que podem facilitar a implementação de políticas de emprego. Finalmente, descrevemos algumas mundanças mais amplas de enfoque e de concepção de governo municipal que as políticas de combate ao desemprego exigem.

I – Processo recente de urbanização e desemprego

No Brasil, o processo de urbanização foi particularmente acelerado e violento. Na área rural, vivemos nas décadas de 60 a 80 um fortíssimo êxodo de populações agrícolas, que nos transformou, no espaço de uma geração praticamente, de país rural em país urbano. Em termos de ordem de grandeza, dois terços da nossa população viviam no campo nos anos 1950. Em 1960 tínhamos 45% de população urbana, e 76% em 1992, com previsão de 81% para o ano 2.000. Assim, com mais de tres quartos da população vivendo nas cidades, estamos invertendo completamente a situação encontrada há uma geração atrás. Esta urbanização acelerada, tardia e caótica tem o seu preço.

Brasil se urbanizou mais por expulsão do campo, do que por atração das cidades. Este processo merece um detalhamento, pois terá um efeito direto sobre a dinâmica do emprego.

O Brasil, com os seus 8,5 milhões de quilómetros quadrados de superfície, que representam 850 milhões de hectares, tem 371 milhões de solos classificados em potencialidade agrícola boa, boa a regular, regular a boa e regular, totalizando 43,7% do território nacional. O censo dos estabelecimentos, por sua vez, apresenta a seguinte estrutura de exploração agropecuária:

Estabelecimentos recenseados segundo grupos de área (1985)

Grupos de área

Estabelecimentos Recenseados 1985

Área Total (ha)

TOTAL

5.834.779

100,00%

376.296.577

100,00%

Menos de 10

3.085.841

52,89%

10.029.780

2,67%

10 a menos de 100

2.166.424

37,13%

69.678.938

18,51%

100 a menos de 1.000

518.618

8,89%

131.893.557

35,05%

1.000 a menos de 10.000

47.931

0,82%

108.397.132

28,81%

10.000 e mais

2.174

0,04%

56.287.168

14,96%

Sem declaração

13.791

0,24%

 

Fonte: IBGE, Anuário Estatístico do Brasil 1989, p. 292

Constatamos que os pequenos proprietários, representando mais de 3 milhões de estabelecimentos, ocupam apenas 2,67% da área total, enquanto no outro extremo, ao somarmos as classes de mais de 1.000 e de mais de 10.000 hectares, teremos 50.105 estabelecimentos, 1% do total, que controlam 165 milhões de hectares, 44% do solo. Como numerosos proprietários têm vários estabelecimentos, podemos dizer como ordem de grandeza que 50.000 proprietários são donos da metade da área de estabelecimentos agrícolas do país. Particularmente escandalosa é a situação dos 2.174 proprietários de estabelecimentos de mais de 10.000 hectares, que controlam 5 vezes mais área do que os 3 milhões de pequenos agricultores. Notemos ainda que o IBGE aponta para 61 estabelecimentos de mais de 100 mil hectares, que controlam 12,4 milhões de hectares, portanto mais do que o total dos pequenos agricultores.

A principal consequência da manutenção desta estrutura da propriedade rural é a subutilização do solo. Atualmente se utiliza, entre culturas permanentes e culturas temporárias, cerca de 70 milhões de hectares, menos de um quinto do disponível.

É particularmente interessante o cruzamento dos dados de área dos estabelecimentos com os dados da área de produção. Os resultados do censo agrícola de 1985 são os seguintes:

Estabelecimentos recenseados com declaração de área das lavouras (1985)

Grupos de área

Area de lavouras permanentes

Area de lavouras temporárias

Area total de lavoura

Area lavrada (%)

TOTAL

9.835.315

42.545.051

52.380.366

13,92%

Menos de 10

1.121.309

5.444.022

6.565.331

65,46%

10 a menos de 100

4.150.350

15.401.373

19.551.723

28,06%

100 a menos de 1.000

3.284.057

14.379.184

17.663.241

13,39%

1000 a menos de 10.000

948.388

6.350.589

7.298.577

6,73%

10.000 e mais

331.209

969.880

1.301.089

2,31%

 

Fonte: IBGE, Anuário Estatístico do Brasil 1989, p. 292

As duas primeiras colunas são extraidas da tabela do IBGE sobre estrutura de produção agropecuária. A terceira, somando as duas, mostra que, sobre os 370 milhões de hectares de terras boas a regulares do país, estávamos lavrando pouco mais de 50 milhões em 1985 (a cifra em 1995 deve ser próxima dos 65 milhões de hectares), o que representa uma dramática subutilização do solo agrícola.

Mais impressionante ainda, é a comparação das áreas de lavoura com os dados de área disponível por grupo de área. Assim, constatamos que com 6,5 milhões de hectares de cultura permanente e temporária, os pequenos agricultores, que dispõem de 10 milhões de hectares, lavram cerca de 65% da área dos seus estabelecimentos. No outro extremo, os estabelecimentos com 10 mil ou mais hectares, lavram apenas 2,3%. A cifra extrema, que não aparece no quadro acima, é a das propriedades de mais de 100 mil hectares, que controlam 12,5 milhões de hectares e lavram apenas 18 mil, utilizando assim 0,14% dos seus estabelecimentos. No conjunto, os 50.000 grandes estabelecimentos que constituem 1% do total da área rural e ocupam 44% do solo agrícola exploram efetivamente algo da ordem de 4 a 5% da área que controlam.

Esta estrutura da propriedade constitui uma herança relativamente antiga. Nas últimas décadas, a situação foi radicalmente agravada pela expansão da monocultura, que utiliza pouca mão de obra ou a utiliza de forma sazonal, desarticulando inclusive a formação de empregos estáveis, e jogando as familias agrícolas para as periferias das cidades regionais, onde os “gatos” recrutam os “boias frias” nas épocas de plantio ou de colheita.

Por outro, a tecnificação generalizada nas grandes propriedades leva à substituição do homem pela máquina. Através de acordos triangulares que envolveram os grandes proprietários, o governo e as empresas multinacionais de implementos e insumos agrícolas, geraram-se ilhas de agricultura mecanizada, dispondo de computadores e aviões, e ocupando pouca mão de obra.

Mas a principal causa dessa subutilização está no uso da terra como reserva de valor. Em parte por cultura herdada do passado colonial, e em parte pela fragilidade de instrumentos modernos de poupança no contexto de elevada inflação, grandes proprietários se acostumaram a adquirir na terra pelos mais variados mecanismos, aguardando a sua valorização a partir de investimentos do governo em estradas, infraestruturas energéticas e assim por diante. Esta subutilização fica parcialmente disfarçada pela pecuária extensiva, forma de uso do solo que permite dizer que se trata de “pasto”, portanto área “produtiva” e protegida da reforma agrária, ainda que se disponha de dezenas de hectares por cabeça.

A monopolização do solo agrícola como reserva de valor fechou ao trabalhador rural expulso das grandes propriedades a alternativa de criar pequenas e médias propriedades rurais. Esta grande oportunidade perdida, de se gerar um forte tecido agrícola de produção alimentar, levou a população rural às periferias urbanas, gerando o acelerado e caótico processo de urbanização das últimas décadas.

Manter esta situação quando milhões de agricultores querem cultivar e são impedidos por falta de terra — uma pessoa que quer trabalhar a terra é tratada como “invasor” — enquanto dezenas de milhões passam fome, mostra o grau de absurdo que pode atingir a ausência de processos democráticos de decisão no interesse da sociedade.

Se nas últimas décadas assistimos à absurda expulsão do trabalhador rural do campo, na década de 1990 assistimos à acelerada tecnificação da indústria e dos serviços, que reduz a oferta de empregos nas cidades, no que as Nações Unidas têm chamado de jobless growth. O conceito significa que a redução do emprego já não resulta de uma falta de crescimento, ou de uma baixa conjuntura, mas do próprio crescimento e de sua característica de substituição do trabalho. Dados gerais sobre o mercado de trabalho no Brasil nos dizem de uma contração brutal do emprego industrial. De 1989 a 1995 de cada 4 trabalhadores na indústria 1 foi demitido. Os postos de trabalho se reduziram em 26% neste setor. Atualmente os trabalhadores no mercado informal já são 57% do conjunto dos trabalhadores brasileiros.

Se tomarmos a indústria automobilística como referência, sua produção nos últimos 10 anos aumentou em 54,8% enquanto o número de empregos diminuiu 15,2%. Processos semelhantes ocorreram também no setor de serviços, onde os grandes bancos privados nacionais, por exemplo, ampliaram enormemente seus serviços reduzindo, neste mesmo período, seus postos de trabalho em mais de 40%. O aumento do desemprego, no entanto, não impede que nas cadeias produtivas, por exemplo, da indústria automobilística , se utilize intensivamente o trabalho infantil. As crianças compõem 22% da força de trabalho em nosso país. A lógica que preside esta atuação das empresas é a de baratear custos de produção e aumentar os lucros. E o Estado, subordinado aos interesses dos grandes conglomerados industriais e financeiros, promove hoje políticas que favorecem a constituição de ilhas de excelência num mar de pobreza.

Assim, durante as últimas décadas o país assistiu a uma gigantesca transferência das populações pobres do campo para as cidades, facilitada pela intimidação do regime militar, gerando imensas periferias urbanas com poucas infraestruturas. Estas populações frequentemente ficaram sem outra alternativa de emprego do que os miseráveis serviços característicos do desemprego oculto, sobretudo porque nunca contaram com uma sólida base educacional que lhes permitisse a inserção no setor moderno. Nas etapas mais recentes, com a modernização da indústria e dos serviços exigida pela abertura econômica e pelos novos padrões da economia global, esta população se vê crescentemente excluida das poucas atividades urbanas a que teve acesso.

O problema atinge hoje no Brasil dezenas de milhões de pessoas. É importante notar aqui a precariedade das metodologias de acompanhamento da realidade. Como ordem de grandeza, podemos utilizar as cifras seguintes para o Brasil: temos 160 milhões de habitantes; destes, cem milhões estão situados na idade de trabalho, entre 16 e 64 anos de idades; descontando os que não trabalham por opção, chegamos aos cerca de 65 milhões que são considerados “população economicamente ativa”, PEA. Se levarmos em conta os que formalmente se declaram desempregados chegamos a cerca de 60 milhões de trabalhadores que constituem a “população ocupada”. Esta classificação nos permite apresentar porcentagens razoáveis em termos internacionais, de um desemprego da ordem de 6% da PEA, ou pouco mais. Na realidade, o desemprego realmente existente teria de levar em conta, além dos desempregados, os milhões que estariam dispostos a trabalhar se houvesse possibilidade de acesso à terra ou salários mais compensadores, milhões de mulheres que se vêm presas exclusivamente ao trabalho doméstico por ausência de políticas sociais de apoio, e o gigantesco subemprego que constituem os vendedores de rua, guardadores de carro e outros trabalhadores de baixíssima produtividade por inserção precária no mercado, por falta de formação elementar para serem produtivos, ou simplesmente por fome. Não há dúvida que estamos aqui frente a uma impressionante subutilização da maior fonte de recursos de que dispõe o país, a sua mão de obra. As simples porcentagens de desemprego, que avaliam os que nas últimas semanas estavam efetivamente procurando trabalho, constituem metodologias inadequadas para o terceiro mundo. E às dezenas de milhões de desempregados e subempregados, herança estrutural sempre reproduzida, devemos acrescentar os cerca de dois milhões de pessoas suplementares que chegam anualmente ao mercado de trabalho, por simples pressão demográfica.

A conjugação destes fatores torna o desemprego um problema absolutamente explosivo neste fim de século.

II – A nova estratificação do emprego

O emprego deixou hoje de constituir uma noção homogênea, e está mudando rapidamente frente às dinâmicas de inovação tecnológica e à globalização das economias. O Brasil, que possui um amplo parque indústrial, agrícola e de serviços de elevado nível de modernidade, precisa encarar a problemática do emprego em níveis diferenciados.

Atingimos uma fase em que algumas centenas de empresas transnacionais, gerando menos de 3% do emprego mundial, produzem para o mundo inteiro, substituindo atividades “obsoletas” locais e regionais. Hoje milhões de trabalhadores no mundo ficam de mão no bolso olhando nas vitrines das lojas as últimas maravilhas da tecnologia, produzidas em países distantes, sem saber o que fazer com o seu amanhã.

Estes dados merecem ser detalhados, na medida em que as empresas transnacionais assumiram claramente a liderança do desenvolvimento econômico mundial, gerando uma dinâmica sobre a qual mesmo países de porte têm pouca influência. Em termos de volume de produção, as empresas transnacionais são hoje responsáveis por um faturamento da ordem de 5 trilhões de dólares, algo como 25% do Pib mundial. O impacto sobre o emprego, no entanto, evolui inversamente.

O balanço mundial realizado pela Organização Internacional do Trabalho deixa poucas dúvidas: “Calcula-se o número total de postos de trabalho criados diretamente pelas empresas multinacionais no mundo em cerca de 73 milhões, o que equivale mais ou menos a 3% da população ativa mundial. Segundo a Comissão de Empresas Trasnacionais das Nações Unidas, para cada posto criado pelas empresas multinacionais pode haver talvez até um ou dois mais gerados indiretamente, o que implicaria que o emprego total relacionado com as empresas multinacionais possa ser de uns 150 milhões. Nos países em desenvolvimento, os 12 milhões de postos de trabalho criados por empresas multinacionais representam apenas 2% da população ativa destes países; se somarmos os 12 milhões de empregos derivados da possível criação indireta de empregos chegaremos aos 4%. Não há como negar que esta contribuição global das empresas multinacionais no emprego parece hoje insignificante”. É interessante notar a distribuição do emprego das multinacionais no mundo: em 1992, do total de 73 milhões de empregos, 44 estão situados nas matrizes nos países de origem (fundamentalmente Estados Unidos, Alemanha, Japão e uns poucos mais), 17 em outros países desenvolvidos, e 12 nos países em desenvolvimento.

Além disso, os poucos empregos criados no terceiro mundo estão concentrados em poucos países: “A distribuição geográfica dos investimentos diretos externos tornam claro que as empresas multinacionais continuam investindo sobretudo em alguns poucos países em desenvolvimento mais adiantados, e esta concentração tem-se intensificado ultimamente. Em 1992 os dez principais destinatários receberam 76% do total dos investimentos diretos externos no terceiro mundo, em comparação com 70%, mais ou menos, nos dez anos anteriores”.

Nos próprios países desenvolvidos, o processo gera preocupações crescentes. Uma projeção realizada pelo Business Week sobre as tendências do emprego nos traz uma imagem clara. Por um lado, nas próprias empresas transnacionais e de forma geral no setor dinâmico dos países do primeiro mundo, a tendência é para a criação de um “núcleo” de emprego mais nobre, obedecendo ao conjunto das tendências estudadas pelos “gurus” da administração empresarial: reengenharia, redução do leque de hierarquia empresarial, a knowledge organization onde os trabalhadores têm mais autonomia, mais poder de decisão e mais compreensão global dos objetivos. Ao mesmo tempo, no entanto, a busca de redução de custos leva à empresa enxuta,lean and mean, com um volume relativamente pequeno de empregos. Assim, um conjunto de atividades acessórias, que envolvem desde segurança, cantinas, limpeza e coisas do gênero até fornecimento de peças e de serviços vinculados à produção, estão sendo terceirizados, gerando uma ampla massa de precarious jobs, empregos precários, onde a pessoa é perfeitamente substituível, e a relação com normas de trabalho e o nível salarial tende a evoluir de modo negativo. Finalmente, tende a crescer a massa de pessoas simplesmente desempregadas.

Nada melhor do que o próprio relatório da OIT para avaliar os resultados: na América Latina, “entre 1980 e 1992 diminiu constantemente o emprego no setor moderno, em particular o emprego remunerado, que se reduziu ao ritmo anual de 0,1%, aproximadamente, durante a década de 1980. Com isto se inverteu a tendência das tres décadas anteriores, durante as quais um crescimento econômico ininterrupto trouxe uma grande expansão do emprego no setor moderno. No mesmo período, a proporção do emprego no setor urbano não estruturado passou de 13,4% para 18,6% da população ativa. Em quase todos os países, o salário médio real (em todos os setores) diminuiu durante a década de 1980, e só se recuperou em uns poucos países no final da década. A redução variou segundo os setores, desde 5% na indústria até 20% na agricultura. Se estima também que o salário mínimo real baixou em 24% em média na região, enquanto os rendimentos do trabalho no setor não estruturado cairam muito mais ainda, cerca de 42%”.

Assistimos assim a um processo articulado de transformação do emprego. Por uma lado, aumenta o emprego nas empresas transnacionais, passando de 65 para 73 milhões de trabalhadores entre 1985 e 1992. Por outro lado, como os paises em desenvolvimento recebem uma parcela muito pequena deste emprego, mas recebem toda a carga dos produtos que hoje circulam no mercado mundial, gera-se um efeito de desemprego muito amplo, e consequente pressão para a queda de salários e recúo no respeito às normas de trabalho.

No nosso caso, com forte presença de multinacionais dentro do país, e crescente abertura para o exterior, acumulamos os lados negativos do progresso e do atrazo, ao juntarmos a política retrógrada do monopólio de terras agrícolas, expulsando os produtores, com o efeito moderno do desemprego que hoje afeta os país mais desenvolvidos. Conforme constatamos, a população pobre do país, expulsa ontem do campo e hoje excluida do emprego urbano, gera a situação explosiva que se encontra em qualquer município.

Esta evolução leva por sua vez ao surgimento de um conjunto de atitudes defensivas nos países em desenvolvimento, que podemos chamar de estratégias familiares de sobrevivência, que segmentam e desarticulam o universo do trabalho.

Sem entrar no detalhe do processo, alguns exemplos permitem um dimensionamento preliminar. Na cidade de São Paulo são roubados diariamente 420 automóveis, em 1995. Estimando um valor médio de 5 mil dólares por unidade, e multiplicando por 365 dias, chegamos a uma economia que fatura cerca de 700 milhões de dólares por ano. Com estimativas grosseiras que acrescentam as drogas, a prostituição e jogos ilegais como o video-póquer, chegamos a uma ordem de grandeza de 3 bilhões de dólares, numa cidade onde a receita pública para cuidar de saúde, educação, infraestrutura urbana etc., é da ordem de 4 bilhões. Se acrescentarmos os custos indiretos gerados por esta economia ilegal, os números se avolumam rapidamente. A nível do país, o professor Ib Teixeira estimou que as empresas gastam algo como 28 bilhões de dólares por ano em segurança. Já não são cifras marginais, “excepcionais”. Trata-se de atividades econômicas fortemente articuladas com o sistema formal de produção. E envolvem atividades tão diversificadas como o comércio de armas, a agricultura destinada à fabricação de entorpecentes, os desmatamentos ilegais que devastam grandes regiões no mundo, a sobrepesca em áreas fragilizadas, os loteamentos ilegais de especuladores imobiliários que jogam populações miseráveis áreas em de mananciais, o comércio internacional de prostitutas infantís, o tráfico de órgãos humanos para transplante e assim por diante.

Constatamos assim que o processo de avanço tecnológico sem as tranformações institucionais correspondentes, leva a uma nova hierarquização do trabalho característica do subdesenvolvimento tecnificado. No topo da pirâmide, o emprego nobre no setor formal, com salários relativamente elevados e normas de trabalho relativamente respeitadas, mas envolvendo um segmento minoritário da população, tanto em volume como em termos de distribuição regional. Mais abaixo, o conjunto de atividades terceirizadas mas ou menos instáveis, onde a precariedade leva a uma grande insegurança, e gera um volume elevado de pequenas e médias empresas de elevadíssima taxa de mortalidade. Em torno deste espaço formal, desenvolve-se um amplo sistema de economia informal, que hoje ocupa frequentemente um terço da totalidade de mão de obra, e onde os níveis salariais, respeito a normas de trabalho e preservação ambiental atingem níveis muito precários. Finalmente, uma massa hoje muito significativa da mão de obra opta pela economia ilegal, ou subterrânea, desarticulando e desagregando rapidamente a sociedade, como tem sido constatado por exemplo desde as favelas do Rio de Janeiro até as regiões produtoras de drogas da Colômbia ou da Tailândia.

De certa forma, o processo extremamente dinâmico de modernização econômica controlado pelas empresas transnacionais gera um imenso volume de produtos, que atinge toda a população mundial, mas gera um fluxo de renda incomparavelmente menor, e um impacto de emprego menor ainda. O produto barato que invade o mundo da economia globalizada reduz o espaço de sobrevivência de pequenas empresas locais e regionais, de formas tradicionais de responder às necessidades, substituindo centenas de empregos locais por um emprego extremamente produtivo de uma multinacional. Isto pode garantir um temporário pleno emprego no Japão ou na Coréia, na medida em que produzem para este mercado mais amplo e mantêm nas suas fronteiras o impacto de renda e de emprego. Mas simplesmente não pode funcionar para o conjunto.

Convergem assim para a problemática do emprego e do desemprego um conjunto de fatores de transformação social. A urbanização torna o emprego mais vital, pois enquanto no campo a terra é simultâneamente um emprego e a base espacial da vida, permitindo no pior dos casos uma razoável atividade de subsistência, na cidade uma familia sem os rendimentos provenientes do emprego é imediatamente jogada em situação crítica, sobretudo no terceiro mundo onde as “redes” de segurança são simbólicas. A transformação das bases produtivas da reprodução social levou à formação de gigantescos bolsões de empregos “não viáveis”, na expressão do Banco Mundial, sobretudo numa economia globalizada. A dinâmica tecnológica está simplesmente colocando fora do mercado grandes áreas, como por exemplo hoje o emprego em agências bancárias. Finalmente, é importante lembrar que hoje uma pessoa que não está vinculada a um emprego simplesmente perde cidadânia, na medida em que a urbanização liquidou em boa parte as estruturas comunitárias tradicionais e as redes familiares de solidariedade.

Não há dúvida que gerar produtos mais performantes, mais baratos, e com custos menores em termos de mão de obra e de matérias primas, constitui um fator positivo em termos de produtividade global. No entanto, se não se reorganiza a sociedade para fazer face a estas transformações, teremos custos humanos e sociais incomparavelmente maiores, levando a uma desarticulação política que tornará estes processos produtivos inviáveis.

De toda forma, a tendência atual em termos de emprego aponta para o fato de que o setor de ponta, ou mais moderno, da economia, não poderá absorver nem o aumento vegetativo da força de trabalho, nem o desemprego acumulado, exigindo portanto medidas de outro nível. Por outro lado, emprego situa-se hoje em diversos subsistemas que necessitam de dinâmicas diversificadas de intervenção.

O próprio Banco Mundial, tão propenso a deixar a mão invisível agir de maneira irrestrita, conclui o seu relatório sobre o emprego no mundo afirmando que “as alternativas não são delaissez-faire ou de intervenção governamental; trata-se de definir ações públicas efetivas capazes de dar suporte ao funcionamento eficiente do mercado, encorajar o investimento produtivo e responder às necessidades particulares de trabalhadores que são discriminados ou colocados em situação de desvantagem…Para que uma estratégia baseada em mercado possa ter sucesso, os governos têm de estabelecer políticas de trabalho para lidar com os direitos básicos do trabalhador, a discriminação e a desigualdade, a segurança de acesso à renda, e o próprio papel do governo como empregador.”

A Organização Internacional do Trabalho segue uma visão semelhante: “Para aumentar o número de postos de trabalho produtivos no setor moderno é indispensável uma boa adaptação à mundialização, mas isto não basta. Em muitos países em desenvolvimento, a maior parte da população ativa segue trabalhando nos setores rural e urbano não estruturado, de pouca produtividade. O subemprego é endémico, e nestes países os pobres estão concentrados nestes setores. Procede pois, que a política de desenvolvimento não os deixe em segundo plano e que nos programas públicos se dê prioridade às medidas destinadas a atenuar o subemprego e a pobreza”. A OIT recomenda assim intervenções firmes por exemplo no mercado de capitais, no sentido de uma maior igualdade de acesso, para elevar a produtividade nos setores rural e urbano não estruturado.

Ao mesmo tempo que se busca uma reforço da capacidade de governo, se constata a sua erosão: “A consequência da mundialização é que se enfraqueceu a capacidade de administração da economia de cada país. No plano macroeconômico, a mobilidade do capital financeiro reduziu o controle do Estado sobre os juros e o cambio; a flexibilidade das empresas multinacionais reduziu a possibilidade do governo influir sobre o nível de investimentos e a sua localização geográfica; e, dada a mobilidade internacional do pessoal técnico e muito qualificado, aos governos tornou-se hoje difícil impor a progressividade fiscal para a renda e a riqueza e manter um elevado nível de gastos públicos”.A recuperação da governabilidade está portanto no centro do problema.

Frente à dimensão que o problema assumiu, não faltam inovações teóricas e experiências inovadoras. Na linha teórica constitui um aporte importante o trabalho de Guy Aznar, que sugere que se redistribua globalmente o trabalho entre os que se queixam do seu excesso, e os que se queixam de não conseguirem trabalho. A proposta mostra com cálculos que é perfeitamente viável reduzir a jornada de trabalho, manter os salários, e compensar as empresas das suas perdas através da reorientação dos subsídios ao desemprego. Elaborada para a França, a proposta tem o mérito de colocar claramente em discussão a gestão do “estoque” de empregos da sociedade, e as novas políticas que deverão surgir.

As experiências inovadoras não faltam. O Estado de Kerala, na India, está dando um exemplo sumamente interessante que mostra a que ponto uma sociedade que assume a sua própria gestão pode equilibrar o processo de desenvolvimento e o equilíbrio na distribuição do emprego mesmo em condições de baixa renda e nível precário de modernização. A cidade de Santos, perto de São Paulo, mostra que apesar do nível de emprego depender em grande parte de políticas macro-eonômicas, uma administração municipal pode organizar a informação sobre os seus desempregados ou subempregados, identificar nichos de emprego disponível, e melhorar radicalmente a situação ao assegurar uma micro-gestão dos problemas. A China está inovando ao descentralizar a gestão das suas empresas públicas, desenvolvendo o espaço econômico municipal, assegurando simultaneamente a flexibilidade da gestão local e o interesse social da empresa pública. A Italia está inovando com empresas sociais. Todas estas experiências apresentam pros e contras, mas de forma geral demostram que terminou o tempo em que as comunidades podiam se contentar em se queixar do governo central e esperar melhores tempos.

É preciso lembrar também que o problema do trabalho não pode mais ser reduzido à questão do “emprego” que garante uma vinculação formal da pessoa com uma instituição. A comunidade necessita de um grande volume de serviços antigamente prestados pela familia “ampla”, pelos avós, tios, amigos da familia que ajudavam a cuidar a casa, as crianças, os idosos, os deficientes e os espaços comunitários. A cidade de Lausanne, na Suiça, tirou os idosos dos hospitais quando podem ou preferem ficar nas suas casas. Voluntários treinados, normalmente vizinhos, encarregam-se mediante remuneração da prefeitura de cuidar das atividades que os idosos não podem enfrentar sozinhos, como compras, banho ou outras necessidades diferenciadas. Não se trata aqui de um funcionário público que cuida do idoso, mas de uma pessoa da vizinhança que cria relações de amizade. Economiza-se o leito hospitalar, capitaliza-se a residência que o idoso já tinha, e aproveita-se o capital de boa vontade de pessoas que efetivamente gostam de cuidar dos outros. Na medida em que as atividades produtivas irão reduzindo as suas necessidades em mão de obra, os serviços comunitários poderão assumir um papel muito mais importante, e diretamente vinculado à melhoria da qualidade de vida local.

Se pensarmos um pouco, constatamos que é absurdo que nos vejamos ameaçados pela tecnologia, que nos permite assegurar as nossa necessidades com menos trabalho. Não é a tecnologia que é uma ameaça, e sim o atrazo das instituições, das formas de organização social capazes de transformar os avanços técnicos em qualidade de vida, em maior lazer, em vida social e culturalmente mais rica.

Quando enfrentamos a problemática do desemprego a partir de iniciativas municipais, não estamos portanto apenas buscando um pouco de “alívio” frente a uma situação explosiva. Estamos criando as bases de formas renovadas de organização social que, dentro dos limites naturais da ação local, hoje se tornaram importantes em qualquer parte do mundo.

III – Políticas locais de emprego

As políticas mais amplas analisadas acima têm impacto profundo nas economias locais, nos municípios mais distantes, como se constata com a perda de empregos em Franca na área de calçados, em outros municípios na área têxtil, em quase todos os municípios do país em função do êxodo rural e assim por diante. Os processos relativos ao desemprego ou à mudança da estrutura do emprego pertencem portanto fundamentalmente a um espaço econômico e político mais amplo do que o município.

Por outro lado, conforme se constatou nas discussões do seminário de Agudos sobre políticas locais de emprego, muito pode ser feito quando um governo municipal decide arregaçar as mangas e, junto com os diversos atores sociais locais, melhorar a situação dos seus habitantes.

  • Agricultura

subutilização do solo agrícola que vimos acima manifesta-se em última instância em cada município do país. Muitas vezes, a profundidade do êxodo rural levou a uma queda de população rural suficientemente forte para que em realidade seja mais apropriado falar em reconstrução da relação cidade/campo a partir da cidade do que própriamente de reformas agrárias. A dinamização das atividades rurais, em torno da agricultura familiar, pode ter um efeito renovador da economia municipal e de absorver desemprego extremamente significativo, e não se pode trabalhar a longo prazo na visão de que a absurda divisão das terras no Brasil será mantida.

Há nesta área um grande número de iniciativas conjuntos a serem desenvolvidas entre prefeituras, ONG’s, universidades e outros parceiros, particularmente visando o estudo aprofundado da estrutura do uso e apropriação do solo, culturas mais apropriadas e assim por diante.

  • O cinturão verde das cidades

O solo pode ter diversas intensidades de uso. Cinco hectares de horticultura representam um grande empreendimento; o cultivo temporário representa ainda uma agricultura intensiva; o uso do solo para culturas permanentes como citros, por exemplo, ao não se utilizar culturas associadas, representa um uso do solo relativamente menos intensivo; a pecuária intensiva que semeia pasto e utiliza rações equilibradas de complemento constitui ainda um uso racional do solo; já a pecuária extensiva constitui um evidentemente esbanjamento do solo, além de constituir um fator de expulsão de mão de obra e de desorganização do tecido social rural.

Existem hoje de exemplos que vão desde a China que cultiva cada lote urbano até a pequena horticultura peri-urbana da Europa. O estudo do potencial de cada cidade, a identificação de novas possibilidades, que inclui piscicultura, floricultura e outros, pode abrir importantes perspectivas de cooperação entre ONG’s, prefeituras e instituições científicas locais.

  • Relação cidade/campo

A relação cidade/campo, que evoluiu de maneira extrema para o esvaziamento do espaço rural, com gigantescas áreas paradas, enquanto se acotovelam nas cidades pessoas com atividades estritamente urbanas, deverá passar para um processo mais equilibrado de interações. A identificação de espaços turísticos no campo, o melhor aproveitamento das atividades chacreiras, a utilização dos rios para diversos fins, o reflorestamento visando preservação ambiental, a pesquisa da bio-diversidade e outros abrem inúmeros espaços para uma volta produtiva ao campo através de uma articulação cidade/campo desenvolvida a partir das próprias cidades.

Nesta área diversas cidades e ONG’s do mundo já acumularam inúmeras experiências, e uma “cross-fertilization” de práticas já desenvolvidas poderia ser de imensa utilidade.

  • Pequena e média empresa

A cidade de Porto Alegre abriu o seu cadastro de atividades econômicas ao público, o que permite hoje que pequenas e médias empresas se instalem na cidade partindo de boas informações sobre que bairro tem insuficiências de que serviços. Em Santos, a simplificação burocrática permite que a autorização de funcionamento da PME seja dada no ato do pedido, estimulando as pessoas a tomar este rumo. Outros municípios, como o Governo do Distrito Federal, criaram sistemas flexíveis de acesso a crédito em pequena escala. Há um conjunto de atividades de apoio deste tipo que podem ser essenciais na dinamização da pequena e média empresa.

Há muitas atividades a desenvolver em termos de catalogação das experiências, organização do cruzamento das experiências, pesquisa de impacto, formação de micro-empresários e assim por diante.

  • Empresas sociais

As empresas sociais constituem uma modalidade em rápido desenvolvimento nas mais variadas partes do mundo. No Brasil, o Sebrae ajudou a montar nos últimos anos 450 empresas deste tipo, baseadas na associação de pessoas físicas que juntam os seus poucos recursos para formar empresas sociais nos mais diversos ramos. A modalidade é particularmente interessante, pois frequentemente as pessoas têm capacidade de poupança, mas não em montante suficiente para formar uma empresa, enquanto o sistema formal de crédito se concentra essencialmente em atividades especulativas.

Podem ser realizadas parcerias SEBRAE/ONG’s/prefeituras e organizações comunitárias para dinamizar este tipo de atividades. Os avanços de Porto Alegre nesta área deveriam ter a sua aplicabilidade a outros municípios estudada.

  • Infraestruturas municipais

A recente e caótica urbanização no Brasil levou ao um gigantesco acúmulo de atrazos no que toca às infraestruturas básicas das cidades, envolvendo grandes obras mas também um grande número de obras simples, como drenagem, contenção de encostas, arborização, construção de escolas etc. A cidade de Santos, por exemplo, mobilizou os desempregados cadastrados e os próprios habitantes na realização da microdrenagem dos morros da cidade, obras numerosas mas demasiado dispersas para atrair as atividades de um gigante como a SABESP e grandes empreiteiras.

Ete tipo de ação pode absorver muito desemprego de baixo nível de qualificação, mas exige um certo enquadramento técnico, além da delimitação das ações a serem empreendidas. O aporte de diversas instituições para ajudar a resolver esta dimensão organizacional dos problemas seria bem-vindo.

  • Atividades comunitárias

Em boa parte dos municípios do Brasil, já há suficiente consciência comunitária para que as pessoas, ainda que mantendo as reivindicações de um maior apoio do governo, arregacem as mangas e comecem elas mesmas a resolver os problemas. Esta atitude tem permitido o surgimento de um grande número de mutirões de construção de habitações, o que leva tanto à absorção do desemprego como à melhoria da qualidade de vida das populações mais pobres.

Grande parte das dificuldades das organizações comunitárias nesta área resulta não da falta de vontade de fazer as coisas, mas das mais diversas manipulações jurídicas e políticas que sofrem, quando não de ameaças dos especuladores imobiliários. Um apoio de ONG’s relativo aos seus direitos, à pesquisa cartorial, divulgação de atividades para assegurar mais força política das initiciativas e outras ações são perfeitamente possíveis e necessárias.

  • Economias de localização

Ainda que só se fale hoje em globalização, a realidade é que um grande número de atividades apresenta vantagens significativas de localização, que podem ser pesquisadas, avaliadas e apresentadas às prefeituras, empresários, sindicatos e organizações comunitárias, visando a dinamização de atividades econômicas locais. A produção de materiais de construção básicos, como argila, pedra e areia, por exemplo, que envolvem importantes custos de transporte, é mais barata quando assegurada localmente. A quebvra de sistemas de atravessadores no caso dos horti-fruti-granjeiros pode igualmente ajudar a dinamizar atividades locais, reduzindo as absurdas viagens dos produtos pelos sistemas de intermediação da cidade de São Paulo e outras localidades.

Trata-se de um trabalho de pesquisa, identificação, avaliação de atividades que podem ser executadas através do apoio de organizações diversas em sistemas de parceria.

IV – Organização das políticas de emprego

As linhas de trabalho vistas acima podem ser facilitadas através de sistemas de organização mais amplos, destinados a abrir espaço para que as organizações de base comunitária, as organizações não-governamentais e outras instituições interessadas possam efetivamente abrir novos espaços de atividades.

De forma geral, trata-se de conhecer melhor a situação do emprego local, do desemprego, dos recursos subutilizados no município e assim por diante, gerando um contexto institucional que possa catalizar o potencial econômico local.

  • Cadastro de desempregados

A cidade de Santos organizou, através da prefeitura municipal, um registro de desempregados, que permite que não se trabalhe mais com uma categoria abstrata, o emprego, e sim com possibilidades concretas de cada trabalhador desempregado. Ainda que o problema pareça conhecido, ele precisa ser detalhado em cada município concreto, pois se trata de assegurar resultados práticos e as situações são muito diferenciadas.

Há diversas metodologias na área, podem ser organizadas parcerias com Ibase, do Rio de Janeiro, o Dieese de São Paulo e outras instituições, e torna-se perfeitamente factível nesta área trabalhar com universidades e prefeituras em parcerias de diversos níveis.

  • Estudo de recursos subutilizados

Conhecemos hoje uma impressionante subutilização do solo, que se manifesta município por município. Conceito trabalhado por Ignacy Sachs e hoje desenvolvido pelo Banco Mundial, o enfoque da subutilização de recursos, implicando o esforço sistemático de identificação dos recursos naturais, humanos e de capital que poderiam ser melhor mobilizados em nível local, constitui um eixo de trabalho essencial para numerosas administrações. A mobilização dos recursos subutilizados e a racionalização geral das atividades locais implicam um esforço sistemático de estudos e organização do conhecimento sobre o potencial existente, enfocando o ciclo completo de atividades que asseguram o desenvolvimento econômico e social. Trata-se de ordenar o conhecimento das atividades de produção; dos serviços de intermediação comercial e financeira, cuja organização racional assegura vantagens indiscutíveis à economia local; das infraestruturas econômicas que geram economias externas (transportes, telecomunicações, energia e água); das infraestruturas sociais, como saúde, educação, cultura, comunicação e lazer, que permitem o investimento adequado no homem e na qualidade de vida, constituindo hoje provavelmente o investimento mais produtivo que possa ser realizado; e da própria capacidade de gestão de desenvolvimento, identificando os pontos de estrangulamento, as áreas de inércia administrativa e assim por diante. A sólida organização do conhecimento da comunidade sobre si mesma pode ser uma alavanca poderosa para o desenvolvimento, e uma das mais subestimadas.

Esta área abre um imenso espaço de cooperação internacional e de parcerias a nível local entre os espaços públicos, privados, e público-comunitário.

  • Conselho municipal de emprego

Enquanto antigamente se criava para cada problema um departamento público, uma secretaria especializada, com funcionários e encargos, hoje se tende mais simplesmente a gerar um espaço de elaboração de consenso entre os atores sociais efetivamente interessados na solução de um problema. O emprego exige uma estrutura leve que permita aos sindicatos, orgãos da prefeitura, eventualmente outros órgãos do Estado, empresas privadas e organizações de base comunitária, bem como instituições científicas e ONG’s, definir politicas concretas que envolvem cada um dos atores sociais de forma articulada com os demais. Este tipo de trabalho tem dado bons resultados em nível municipal.

O apoio à organização deste tipo de de sistema de gestão é essencialmente gerencial, e também de organização as redes de circulação de informação correspondentes.

  • Formação de mão de obra

Assume hoje grande importância a geração de sistemas complementares de formação de mão de obra extremamente flexíveis. De ceta forma, é preciso substituir os sistemas organizados por oferta, onde uma pessoa se inscreve em currículos fixos, por sistemas organizados por demanda efetivamente manifestada pelas organizações comunitárias, sindicatos e outros.

Hoje já há metodologias avançadas nesta área, e um apoio na dinamização de formas de educação permanente, reciclagem, atualização tecnológica e outros seria extremamente bemvindo.

  • Políticas de comunicação

As políticas mais abrangentes não são possíveis sem se criar um tipo de cultura no sentido mais amplo, de valores sociais orientados para um desenvolvimento local, para a busca de soluçòes práticas aos problemas por parte de todos os atores sociais. Assim, a comunicação, hoje com tantos avanços tecnológicas e tão mais simples de ser organizada, assume hoje um papel essencial. A política de Santos relativamente às crianças de rua, por exemplo, que foi selecionada como uma das 100 melhores experiências mundiais pela Cúpula de Istambul, fez um acordo com uma radio de grande audiência para que as próprias crianças pudessem se manifestar, chegando com a sua mensagem a todas as casas, reduzindo os preconceitos, criando uma nova cultura e uma consciência mais aberta na cidade. No Brasil este instrumento pode ser particularmente produtivo, na medida em que existem receptores de televisão mesmo nos domicilios pobres – estima-se que 82% dos domicílios brasileiros tenham aparelhos de TV.

Nesta área o conhecimento tecnológico e organizacional é mais importante do que grandes investimentos, e uma cooperação com ONG’s e outras instituições com experiência na área pode ser crucial.

V – Emprego e estratégias municipais

Como em outras áreas, os novos desafios exigem novas soluções políticas e institucionais. Não há solução milagrosa para a situação que enfrentamos. No entanto, certos pontos de referência para a ação podem ser apontados:

O princípio da descentralização: na dúvida, ou salvo necessidades claramente definidas de que as decisões pertençam a escalões superiores na pirâmide da administração, estas devem ser tomadas no nível o mais próximo possível da população interessada. E nos referimos aqui a capacidade real de decisão, com descentralização dos encargos, atribuição de recursos e flexibilidade de aplicação. Este princípio da “proximidade” vale tanto para a administração pública como para autarquias e o setor privado. E não se trata de dotar as administrações centrais de “dedos mais longos” com a ciação de representações locais, mas de deixar as administrações locais gerir efetivamente as atividades.

Papel mobilizador da administração local: independentemente das atribuições próprias nas áreas dos serviços básicos como limpeza urbana e serviços sociais, a admnistração local tem de assumir um papel catalizador das forças sociais em torno dos grandes objetivos de médio e longo prazo da comunidade. Para dar um exemplo, o Rio de Janeiro perdeu espaço em tres eixos chave da sua sobrevivência econômica, a administração federal, a indústria e as atividades portuárias, constituindo hoje um gigantesco cogumelo demográfico sem a base econômica correspondente. Bem antes da atual implosão social que torna qualquer alternativa difícil, a cidade devia realizar os investimentos de longo prazo e mobilização social para se tornar grande capital turística, preparando assim um eixo econômico de desenvolvimento de mais longo prazo. Não podemos mais continuar com administrações locais que se limitam à cosmética urbana e algumas atividades sociais.

Organização dos atores sociais: a concepção de que as câmaras de vereadores, que representam o aspecto político de alguns segmentos da sociedade local, podem representar efetivamente os interesses complexos e em plena transformação dos principais atores sociais do município, é demasiado estreita. As administrações locais devem criar foros de elaboração de consensos em torno dos problemas chave do desenvolvimento, incluindo nestes foros representações das empresas, dos sindicatos, das organizações comunitárias, das organizações não governamentais, das instituições de pesquisa, dos diversos níveis de administração pública presentes no município, de forma a assegurar que a gestão se torne mais participativa. Os exemplos bem sucedidos de administrações locais mostram antes de tudo uma grande capacidade de “engenharia social” no sentido de elaborar sistemas flexíveis de parcerias nos mais diversos níveis.

Enfoque da inovação: neste fim de século que apresenta transformações tecnológicas profundas, com inovações informáticas que permitem modernizar e dar transparência à administração, com a telemática que permite dar acesso instantâneo ao munícipe sobre dados de gestão referentes à sua cidade, com as fotos de satélite digitalizadas que permitem o seguimento da situação ambiental, com novas tecnologias de reciclagem de resíduos sólidos ou biodegradação de esgotos, com novos enfoques organizacionais mais horizontais e flexíveis, as administrações devem perder o medo de inovar, ou ainda de introduzir soluções em caráter experimental, deixando a própria sociedade se pronunciar sobre o acerto de determinadas inovações.

Enfoque de eixos críticos de ação: além das rotinas setoriais, que asseguram a gestão dos serviços básicos, é importante que as administrações locais trabalhem a definição dos eixos críticos de ação que permitam desencadear uma mobilização da sociedade em torno dos seus interesses de médio e longo prazo. Ações “desencadeadoras” deste tipo podem ser vistas em Santos, com a recuperação da balneabilidade das praias que está mobilizando o conjunto da sociedade em torno da modernização do turismo e da economia local, ou o programa de saúde em Penápolis que resultou em forte estruturação local dos municípios em torno dos seus interesses, ou ainda o programa ambiental de Curitiba, que teve um grande poder de agregação dos principais atores sociais da cidade em torno da modernização urbana em geral.

No entanto, sugestões como estas, e a existência de experiências pontuais de renovação que estão despontando em diversas partes do mundo, mostram que a problemática do emprego, mais do que qualquer outra, exige políticas, no sentido mais forte do termo, e políticas não surgem sem as instituições correspondentes. No nível mundial não há governo. O Estado nacional sofre uma profunda erosão. Os governos locais ainda estão no limbo, particularmente nos países em desenvolvimento. Os sindicatos estão fortemente desarticulados e abalados pelo deslocamento e nova hierarquização do emprego, bem como pela imensa pressão do desemprego estrutural. E o mercado nesta área é particularmente inoperante como mecanismo de regulação, devido em particular à imensa desigualdade dos atores econômicos e sociais.

Neste profundo processo de mudança em todas as áreas que caracteriza o nosso desenvolvimento recente, novos caminhos são necessários. Não é mais viável uma cidadânia passiva que aguarda soluções políticas dos políticos e milagres econômicos das empresas. Mesmo porque tanto a burocracia estatal como o curto horizonte empresarial tem nos levado a um acúmulo impressionante de dramas sociais, econômicos e ambientais.

Nessa busca de novos caminhos, o espaço local pode ser um espaço privilegiado, na medida em que frente a uma realidade comum para diversos atores sociais, podem ser propostas e implementadas políticas novas e integradoras do processo de reprodução social.

Ladislau Dowbor, 59, é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e do Instituto Metodista de Ensino Superior, autor de “O Que é Poder Local?”, Brasiliense 1994, e de numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social. Foi Secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo. FAX: (5511) 871-2911

Politicas Municipais de emprego:
publicado na revista Pólis, São Paulo, n.25, 1996

 

 

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