Utopia para realistas: como construir um mundo melhor
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Utopia para realistas: como construir um mundo melhor

O sucesso mundial do livro do Bregman se deve à forma prática e direta de tratar os nossos grandes dilemas. O que fazer com a desigualdade, com a jornada de trabalho, com as migrações, com o sistema financeiro que desarticula os processos econômicos, sociais e políticos.
Autor
Rutger Bregman
Tamanho
250 páginas
Editora
Ano
2018
ISBN
978-85-431-0653-3

O sucesso mundial do livro do Bregman se deve à forma prática e direta de tratar os nossos grandes dilemas. O que fazer com a desigualdade, com a jornada de trabalho, com as migrações, com o sistema financeiro que desarticula os processos econômicos, sociais e políticos. Enfim, vai direto para onde dói o calo e mostra como, no essencial, sabemos muito bem o que fazer, temos os meios, mas nos envolvemos desnecessariamente em inventar narrativas para evitar de mexer no absurdo que nos cerca. Eu tenho chamado isso de impotência institucional. Mas Bregman não apenas aponta os problemas chave e os rumos, como escreve de maneira prazerosa e direta. Em suma, é um ótimo livro, particularmente para os que se veem atolados em preconceitos e dramas ideológicos.

Pobreza, explica ele, é essencialmente falta de dinheiro. A solução não exige teorias particularmente sofisticadas: para resolver a pobreza, temos de dar dinheiro aos pobres. Considerando as bobagens escritas por tantos economistas, só esta brilhante análise e interessante solução mereceriam o chamado Nobel de economia. A verdade é que hoje já temos inúmeras experiências exitosas, aliás muito claramente descritas e sintetizadas no livro, mostrando que os pobres, ao receber um pouco de dinheiro e a segurança correspondente, não se encostam, não enchem a cara, não se afundam na droga. Pelo contrário, saem do desespero, recuperam a sua capacidade de pensar no próprio futuro, e passam a contribuir produtivamente para a sociedade de vez de custar. O cálculo simples de quanto custa a pobreza, e de quanto custa financiar a renda básica, mostra que não se trata de “dar dinheiro a quem não merece”, mas de um ótimo investimento social e econômico.(181) “Erradicar a pobreza nos Estados Unidos custaria apenas 175 bilhões de dólares, menos de 1% do PIB. ” (43)

Bregman mostra igualmente o imenso custo financeiro e burocrático de se montar amplas burocracias para vigiar cada programa de apoio aos pobres, privando eles de qualquer sentimento de iniciativa, do direito à suas opções, de que são donos e protagonistas das suas vidas. Em vez de burocracias, cobertas de argumentos de elevada natureza ética de que se trata de proteger os próprios pobres, trata-se de dar-lhes o que merecem, pois não são eles que geram a pobreza e a desigualdade. Naturalmente, com a fragilização generalizada não só do emprego formal, mas das relações de trabalho em geral, trata-se de simples bom senso: temos o dinheiro, formas práticas e controladas de transferência, o impacto humano e social é extremamente positivo, e o impacto econômico é de redução de custos (170). Precisa fazer um desenho, para os que acham que os pobres são “vagabundos”, ou, como disse Margareth Thatcher, pessoas “sem caráter”? A burrice, aqui, está no andar de cima.

“Formulários, entrevistas, checagens, apelos, avaliações, exames, consultas e depois mais formulários – todo pedido de assistência tem os próprios protocolos degradantes e desperdício de dinheiro…Isso não é uma guerra contra a pobreza: é uma guerra contra os pobres. ” Tudo isso baseado numa falácia: “A falácia de que a vida sem pobreza é um privilégio que só pode ser atingido com muito trabalho e não um direito que todos merecemos ter.” (86)

Bregman apoia a sua visão nas profundas mudanças tecnológicas, nas polarizações correspondentes e na fragilização do acesso à renda por meio do emprego. As soluções vão no sentido da redução da jornada de trabalho: “O objetivo de uma jornada de trabalho semanal mais curta não é apenas ficarmos em casa sem fazer nada, mas sim passarmos mais tempo fazendo as coisas que importam de verdade para nós. No fim, não são o mercado nem a tecnologia que decidem o que tem valor real, mas sim a sociedade. Se quisermos que este século torne todos nós mais ricos, então temos de nos livrar do dogma de que todo tipo de trabalho é significativo. E, enquanto isso, vamos também nos livrar da falácia de que um salário mais alto automaticamente reflete o valor social desse trabalho. Então poderemos compreender que, em termos de criação de valor não vale a pena, de fato, trabalhar em banco. ” (148)

A referência ao trabalho em bancos se apoia aqui nas análises de David Graeber, autor do influente estudo “Bullshit Jobs”. Os lixeiros, escreve Bregman, fazem um trabalho essencial para nós, mas “a dura realidade é que um número cada vez maior de pessoas tem empregos que não fazem muita falta à população. Se parassem de trabalhar de repente, o mundo não se tornaria mais pobre, mais feio ou pior em qualquer sentido. Como os operadores da bolsa em Wall Street, que forram seus bolsos às custas do fundo de pensão alheio. Ou advogados astutos que conseguem arrastar um processo corporativo até o fim dos dias. Ou mesmo o publicitário brilhante que cria o slogan do ano e provoca a falência dos competidores. Em vez de criarem riqueza, esses empregos, na maior parte, apenas a transferem de uns para outros…Embora os bancos hoje tenham se tornado muito grandes, a maior parte do que fazem é simplesmente mover riqueza ou até mesmo destruí-la. Em vez de fazer o bolo crescer, a expansão explosiva do setor bancário aumentou a fatia que serve a si mesmo. “(134)

Pesquisa recente estima que “37% dos trabalhadores britânicos acham que têm um trabalho inútil” (142). Em geral são os mais bem pagos. Se é por questão de merecimento, é tempo de invertermos o raciocínio. “Enquanto os políticos não param de discursar sobre a necessidade de reduzir a máquina do governo, permanecem em silêncio quanto ao número de empregos inúteis que continua a crescer.” Porque é que conseguimos nos convencer de que o mundo de burocratas inúteis que pagamos existem essencialmente no setor público? E a contabilidade defasada que constitui o PIB apresenta custos como produto: “O banqueiro que vende indiscriminadamente o máximo de hipotecas e derivativos para faturar milhões em bônus contribui mais para o PIB hoje do que uma escola repleta de professores ou uma fábrica de automóveis cheia de mecânicos…A ideia de que o PIB ainda serve como medida precisa do bem-estar social é um dos mitos mais disseminados do nosso tempo.”(94)

Encontramos pelo texto afora análises muito realistas sobre temas chave, em particular desbancando mitos. E com muito bom humor, como a constatação de que “francamente, quase não existe outro país no mundo em que o Sonho Americano seja mais difícil de se realizar do que nos Estados Unidos. ”(62) Mais do que tratar de utopia, na realidade, o livro sistematiza o óbvio, desbancando preconceitos ou falsas verdades. Uma ótima ferramenta de trabalho para todos nós, em termos de alternativas econômicas e sociais, e na realidade também boa literatura. Nada de economês. Acrescento que sobre cada um dos temas-chave que trata, Bregman traz excelentes fontes para as pesquisas originais que sustentam os argumentos.  

Vale muito a pena também assistir alguns minutos de entrevistas do Bregman, que causaram impacto internacional. Em Davos, onde foi chamado na linha de “também ouvimos pessoas progressitas”, puseram ele numa reunião paralela sobre como ajudar os pobres. Em vez de se gabar com filantropia, disse ele em resumo, paguem os seus impostos. A sua fala, gravada em paralelo, gerou milhões de acessos. Com a repercussão internacional, a Fox, para mostrar espírito esportivo, o chamou para uma entrevista, dando lugar a um bate-boca extremamente divertido, também com grande impacto na internet, já que a Fox cortou, mas ele gravou. Francamente, com Rutger Bergman, temos um bom aliado. Que aliás não hesita em apresentar o outro lado: “De acordo com o escritor inglês Arthur Young (1741-1820), somente um idiota não sabe que as classes baixas devem ser mantidas pobres, do contrário elas nunca serão laboriosas” (63). Aqui algo que reflete em que século andam as nossas próprias ‘classes altas’.

Uma resposta

  1. Gratidão pelo exemplo de exposição de como se deixar um legado educacional. Consulto regularmente o seu site p/ tomar nota de suas resenhas e livros p/ fixar conceitos e pontos de vistas sobre temas sócio econômicos. Valeu Professor!

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