Os descaminhos do dinheiro: juros comerciais (parte III) – outubro – 2012, 6p.
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Os descaminhos do dinheiro: juros comerciais (parte III) – outubro – 2012, 6p.

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
6 páginas
Originalmente publicado
Data

Os descaminhos do dinheiro: juros comerciais

Ladislau Dowbor[1]

4 de outubro de 2012

Estamos, aqui, indo por partes, explorando os meandros da apropriação do dinheiro público, viagem dantesca no interior do monstro. Terceiro mecanismo, na sequência, é a fixação de taxas de juros ao tomador final, por bancos comerciais, mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é que a Selic baixou radicalmente frente aos 25-30% da fase FHC para os 7,5% atuais, sem que houvesse redução significativa dos juros dos bancos comerciais. Naturalmente, os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam que são livres de praticar os juros que querem. A coisa não é assim, por uma razão simples: como trabalham com dinheiro do público, e não dinheiro deles, devem seguir regras definidas pelo Banco Central, e mesmo um banco privado precisa de uma carta patente que o autorize a funcionar dentro de certas regras.

Claro, como se trata de dinheiro do público apropriado diretamente pelos intermediários financeiros, sem ajuda do governo, podemos dizer que tirar dinheiro do nosso bolso sem a ajuda de um político é outra questão. Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do outro, mas não corrupção. Essencial para nós, é que sustentar no Brasil juros que são tipicamente dez vezes (dez vezes, não dez por centos a mais) relativamente aos juros praticados internacionalmente, só pode ser realizado mediante uma cartelização de fato. Cartel é crime. E como durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco Central, tinha-se montado mais um sistema impressionante de legalização do acesso ao nosso dinheiro.

A nossa constituição, no artigo 170º, define como princípios da ordem econômica e financeira, entre outros, a função social da propriedade (III) e a livre concorrência (IV). O artigo 173º no parágrafo 4º estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” O parágrafo 5 é ainda mais explícito: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. Cartel é crime. Lucro exorbitante sem contribuição correspondente produtiva será reprimido pela lei.

A situação é curiosa. Se eu, como economista, disser que os grandes bancos comerciais no Brasil formaram um cartel, eu fico sujeito a ser processado, pois não tenho como puxar um documento de um acordo assinado pelos membros do cartel. Aliás ninguém, obviamente, assina um papel assim. Então em termos jurídicos se eu disser que há um cartel, quem está na ilegalidade sou eu, e hoje temos todos um saudável receio do que os bancos podem nos fazer via Serasa ou ações judiciais. Portanto, se eu disser numa conferência ou aos meus alunos que há um cartel, quem está na ilegalidade sou eu. Por outro lado, sendo economista, se eu disser aos meus alunos de economia que não há cartel, me considerarão um idiota, porque o sol não se tapa com peneira. Parece que há uma enorme dificuldade na justiça perceber este tipo de ilegalidades. Presunção de culpa, aqui, não funciona. Pero que las hay, las hay!

Eu posso apenas apontar algumas coisas que me deixam desconfiado. O banco Santander (ramo brasileiro) cobra 146% no cheque especial no Brasil, enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil euros. O gigante mundial que é o Santander tem no Brasil 25% do seu lucro global. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as matrizes. Estudo do Ipea, com outra metodologia, mostra que a taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%, quando é de 6,60% no mesmo banco para a mesma linha de crédito no Reino Unido. Para o Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o Citibank são 55,74% e 7,28%  Para pessoa jurídica, o HSBC cobra 40,36% no Brasil, e 7,86 no Reino Unido.[2] O Banco Itaú teve em 2011 um lucro líquido de 14,5 bilhões, montante da mesma ordem de grandeza que o Bolsa Família que resgata da pobreza cerca de 50 milhões de pessoas. O lucro do Itaú vai para muito poucas famílias.

Para quem faltou à aula de economia, um dado básico: a intermediação financeira é uma atividade meio. Não alimenta nem veste ninguém. Só se justifica ao canalizar os recursos para financiar atividades produtivas, cujos lucros irão repor os créditos concedidos, e cujo produto irá sim alimentar e vestir as pessoas. E quando se “facilita” a compra a prazo, se o juro é elevado, por exemplo de 102% como é o praticado para pessoa física, as pessoas irão comprar com uma prestação “que cabe no bolso”, mas no conjunto a metade apenas do dinheiro que gastam irá para pagar o produtor, por exemplo de uma geladeira, e outra metade servirá para pagar juros. O consumidor poderá comprar apenas a metade do que é a sua capacidade de compra real, e o produtor receberá muito pouco pela geladeira que produziu. O intermediário ganhará a metade de todo o valor, sem ter produzido nada. Isto se chama economia do pedágio.[3]

No cartão de crédito as coisas são ainda mais escandalosas. Nota de Lucianne Carneiro em O Globo Economia apresenta juro médio no cartão no Brasil de 238% ao ano, comparado com 16,89%  nos  EUA  e 18,7% no Reino Unido, basaeando-se em dados da Anefac, Banco Central e outros. É uma sangria absurda da capacidade de compra. [4] Ao fazer todos os que entram neste tipo de crédito pagarem muito mais pelos produtos, gera-se um impacto forte sobre os preços finais, aumentando a inflação. O resultado final são dificuldades para o consumidor e para o produtor, e lucros exorbitantes para os intermediários.

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Comenta o estudo do Ipea: “Para empréstimos à pessoa física, o diferencial chega a ser de quase 10 vezes mais elevado para o brasileiro em relação ao crédito equivalente no exterior. Para as pessoas jurídicas, conforme aponta a tabela 3, os diferenciais também são dignos de atenção, sendo prejudiciais para o Brasil. Para empréstimos à pessoa jurídica, a diferença de custo é menor, mas, mesmo assim, é mais de 4 vezes maior para o brasileiro.”

Lucros financeiros como do Itaú no ano passado, 14,5 bilhões de reais, significam quanto foi extraído da economia, não quanto se produziu. A intermediação financeira é necessária, mas quando se usa o oligopólio para fixar juros estratosféricos, o intermediário vira atravessador. Em vez de fomentar, cobra pedágio. Em vez de gerar efeitos multiplicadores, trava a economia. E sobre tudo, é um desvio de dinheiro da economia real, via uma forma institucional ilegal, que é o cartel. E para que não se mude a situação, é essencial que muitos deputados, senadores e funcionários de outras áreas, que não menciono não por decoro mas por prudência, sejam devidamente financiados.

O problema do cartel é que você não tem escolha. Como todos cobram mais ou menos os mesmos juros e as mesmas tarifas, mudar de banco não muda grande coisa, e gera dificuldades burocráticas, apesar do governo ter conseguido aprovar leis que facilitam a mudança de banco. No braço de ferro que hoje se desenrola (2012), o governo está utilizando os bancos oficiais para introduzir gradualmente mecanismos de concorrência, baixando os juros pagos pelos tomadores de empréstimos. A lentidão do processo  mostra a força da resistência. É a lenta e penosa batalha pela transferência dos recursos apropriados pelos rentistas e intermediários em geral, para os setores produtivos.

A contrapartida do juro disfarçado em mensalidades ou discretamente incorporado nos produtos seria que os ganhos fossem reinvestidos, transformado em mais atividades econômicas, produção, emprego. Mas quando pagamos juros incomparavelmente superiores ao custo de intermediação, (coisa que a cartelização permite), e o juro serve para financiar mais intermediários, como por exemplo para comprar títulos do governo que irão demandar mais desvio de impostos para remunerar mais intermediação, trata-se do mesmo mecanismo de desvio de recursos para sustentar atividades parasitárias, O resultado será uma economia estagnada, porque os agentes privados financeiros preferem trabalhar com papéis de que fazer investimento, ou seja, preencher a função social da propriedade prevista na constituição. No conjunto, permite-se que no Brasil se ganhe muito dinheiro mesmo não produzindo, e sim intermediando o esforço dos outros. Alguma semelhança? Mais dezenas de bilhões. Aqui a ilegalidade se defronta com o poder real dos agentes financeiros, como constatamos inclusive na Europa e nos Estados Unidos.[5]

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[1] [1] Ladislau Dowbor, economista, é professor da PUC de São Paulo, e consultor de várias agências das NNUU. https://dowbor.org

[2] IPEA – Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de crise – Comunicado da Presidência, Abril de 2009, p. 15 https://www.ipea.gov.br/sites/000/2/pdf/09_04_07_ComunicaPresi_20_Bancos.pdf

[3] Em agosto de 2012, a ANEFAC constata um juro médio para pessoa física de 101,68%,, e para pessoa jurídica 50,06%; a monstruosidade destas taxas levou a que os intermediários financeiros passassem a apresentar os juros sob forma mensal. No caso acima, os 101,65% são apresentados como 6,02% ao mês, e 50,06%como 3,44%. Tecnicamente é correto, mas permite disfarçar o caráter composto dos juros, o que na prática engana as pessoas. Ninguém entende de matemática financeira. É uma forma eficiente de  reduzir transparência.   https://www.anefac.com.br/pesquisajuros/2012/pesquisa_agosto_2012.pdf

[5] Para um rapido panorama de procedimentos ilegais na esfera da intermediação financeira, ver o dossiê organizado por Carta Maior, https://cartamaior.com.br/templates/index.cfm?home_id=139&alterarHomeAtual=1 , bem como o estudo sobre a gestão dos 21 trilhões de dólares de dinheiro em paraísos fiscais em https://criseoportunidade.wordpress.com/2012/09/12/estimating-the-price-of-offshore/

Artigo também publicado na Carta Maior e  Mercado Ético

 

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