O tráfico de escravos nos portos de Moçambique
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O tráfico de escravos nos portos de Moçambique

Autor
Ladislau Dowbor
Tamanho
Editora
Ano

1733-1904
José Capela, Afrontamento, Porto, 2002, 972-36-0600-3

José Capela é pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Trabalhou longos anos em Moçambique, e nos traz agora uma pesquisa extremamente minuciosa, com levantamento de todos os velhos arquivos portuários em diferentes regiões, exame de manuscritos, além da leitura detalhada dos autores mais significativos. É preciso ler o seu livro para sentir a riqueza do aporte científico que representa.

De forma geral, e com a notável exceção do trabalho de fundo que constitui a História Geral da África coordenada por Ki-Zerbo e publicada pela Unesco (no Brasil, com a editora Ática), os trabalhos tendem a se satisfazer com uma visão ampla e com a denúncia das violências, mas não atingem a profundidade do levantamento que José Capela realiza.

É interessante, para um brasileiro não especializado, ler um trabalho sobre o tráfico de escravos em Moçambique? O livro foi me cair nas mãos em Maputo – presente do amigo Afonso – numa viagem na comitiva do Presidente Lula à África Austral. O Presidente, nas reuniões com os vários chefes de governo da região, enfatizava quanto o desenvolvimento do Brasil moderno se nutriu da tragédia africana. Entre um discurso e outro, eu lia a história da tragédia.

Analisando as partidas de escravos, de navio em navio, José Capela reconstitui o processo. Inicialmente, generalizou-se a caça aos elefantes, para comercializar o marfim. Carregar o marfim, em grandes quantidades, para a costa, por vezes em viagens de vários meses, exigia um grande número de carregadores, que seriam vendidos junto com o marfim. Gradualmente, o tráfico de escravos supera o valor do marfim, e generaliza-se a caça ao ser humano, para equipar, entre outros, as nossas fazendas no Brasil. Em Moçambique, a crescente falta de mão de obra e a desorganização da agricultura generalizam a fome, obrigando uns a se venderem, outros a caçarem os que não se querem vender. Nos portos, ninguém produz nada, pois tudo se paga com escravos. O pouco que existia de atividades produtivas (tecidos, metais) é substituido por importações, já que os navios traziam os produtos da Europa para trocar por escravos, inundando o mercado local.

Inicia-se assim um caos generalizado. E como os negreiros, com suas grandes fortunas, não pensam em ficar ou investir no país, mas apenas em enriquecer rapidamete e emigrar, a descapitalização se generaliza. Nas fases avançadas, no século 19º, a confusão é total: todos roubam de todos, uns caçam aos outros. Levantando os dados do tráfico navio por navio, Capela mostra como ele ainda continua intenso na segunda metade do século, entrando no século XX, até 1905. Em 1905 meu pai já era nacido. Estamos falando, em termos históricos, da modernidade.

De forma geral, quando pensamos na escravidão, pensamos em tempos antigos, em caravelas. Os levantamentos de Capela mostram o tráfico ativo até 1905, apoiado em navios já modernos, com encomendas por telégrafo. A forma como o tráfico se organiza não deixa dúvida quanto ao caráter capitalista do processo: tratava-se de uma commodity, gerou imensas fortunas, e os negreiros ricos, com a ocupação de Portugal pela França, e depois a nossa independência, viriam ao Brasil gozar as suas fortunas, e constituiriam boa parte da espinha dorsal da nossa hoje classe dirigente. Jorge Caldeira mostrou, no seu Mauá, empresário do Império, como estes negreiros controlariam o Banco do Brasil. Tem longas raízes a nossa cultura que preza quem vive do trabalho alheio.

A história é um poço contínuo de ensinamentos. O ser humano, apesar de toda a teoria da evolução, não tem evoluido muito. Visitamos em Maputo um hospital, e vimos a tragédia da Aids. Foi nos relatado como se conseguiu flexibilizar patentes sobre 8 dos 16 medicamentos que constituem o “coquetel” indispensável para salvar os doentes. Estão morrendo milhões. Discute-se as taxas de lucro das empresas transnacionais. Capela mostra negreiros discutindo se vale mais a pena colocar menos negros num navio, para que morram menos, ou colocar mais negros, o que na média terminaria por rentabilizar a viagem, ainda que morressem mais. Na média, trabalhavam com o objetivo de manter os mortos na faixa dos 25%.

Não há dúvida que o formidável caos político e econômico instalado hoje no continente africano está diretamente ligado não só à extração da mão de obra, mas à desarticulação de todo o processo produtivo, e de todo o tecido social, que a generalização do tráfico como atividade econômica gerou.

Quando judeus clamam por indenizações pelos massacres sofridos durante a II Guerra Mundial – e as obtêm – parece-nos natural. Mas o massacre de um continente parece-nos fazer parte das brumas do passado. Não é. O livro de Capela documenta de maneira extremamente precisa a modernidade da escravidão. Os mais cínicos jogam tranquilamente a culpa dos dramas no que se qualificou irresponsavelmente de “tribalismo”. Não é. Trata-se de dinâmicas poderosas geradas por um sistema selvagem de luta por vantagens a qualquer preço. Hoje grandes empresas européias compram rins (de pessoas vivas, extraídos por cirurgia) a 800 dólares, em paises pobres, para revender a 5 mil dólares em países desenvolvidos. Os Estados Unidos, nos últimos 10 anos, multiplicaram por quatro a exportação de armas para a África. Querem instalar uma base militar em São Tomé e Príncipe, para proteger as suas fontes de petróleo no Golfo. A tentativa de golpe de estado data de 2003. São apenas negócios. A escravidão também era. Na época, também se instalavam os fortes.

Ia esquecendo: leiam, vale a pena.

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